A advogada Gabriela Shizue Soares de Araújo é professora de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde também se formou, e é especialista em Justiça Constitucional e Tutela de Direitos Fundamentais pela Università di Pisa, na Itália.
Acompanhe a seguir o artigo sobre "Sistemas eleitorais e democracia paritária", de sua autoria, originalmente publicado pela Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Político (REDESP):
Sistemas Eleitorais e Democracia Paritária
Foi publicado, na mais recente edição da Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político (REDESP), o artigo "Sistemas Eleitorais e Democracia Paritária", da Doutora e Mestre em Direito Constitucional, Gabriela Araujo.
O material pode ser acessado no site da REDESP e está disponível para download em PDF. Você também pode acompanhar o texto, na íntegra, abaixo:
RESUMO
Considerando-se que as mulheres foram, por séculos, no Brasil e no mundo, proibidas até mesmo de votar ou participar ativamente de qualquer tomada de decisão pública coletiva, entende-se que a sua sub-representação nos postos de poder eletivos seja consequência direta de um machismo estrutural que dificilmente arrefecerá espontaneamente. Nesse sentido, o presente artigo propõe-se a analisar as principais normativas no direito internacional e nacional que buscam proteger os direitos políticos das mulheres, com ênfase em cotas e ações afirmativas para combater a desigualdade de gênero e acelerar a participação paritária nos espaços de representação político-institucional. Muito embora a média mundial de representação feminina nos parlamentos ainda seja baixa em comparação com a presença de mulheres no corpo social, há que se ponderar que, em alguns países, o nível de participação é mais elevado, se não já paritário. E é com base no estudo de alguns modelos de sistemas eleitorais do Direito Comparado que se pretende apresentar uma proposta que possa eventualmente ser adotada também pelo Brasil, rumo à tão almejada democracia paritária e inclusiva.
ABSTRACT
Considering that women were, for centuries, in Brazil and around the world, prohibited from even voting or actively participating in any collective public decision-making, it is understood that their under-representation in elected positions of power is a direct consequence of a structural misogyny that is unlikely to subside spontaneously. In this sense, this article proposes to analyze the main regulations in international and national law that seek to protect women's political rights, with an emphasis on quotas and affirmative actions to combat gender inequality and accelerate equal participation in spaces of political-institutional representation. Even though the global average of female representation in parliaments is still low compared to the presence of women in the social body, it must be considered that, in some countries, the level of representation is higher, if not already parity. And it is based on the study of some models of electoral systems in Comparative Law that we intend to present a proposal that could eventually also be adopted by Brazil, towards the much desired parity and inclusive democracy.
INTRODUÇÃO
Em 5 de outubro de 2023, a Constituição Federal Brasileira de 1988, também conhecida como "Constituição Cidadã", completou 35 anos de existência, o que coincide com o maior período ininterrupto, na História do Brasil, em que as mulheres puderam exercer plenamente seus direitos políticos em igualdade formal com relação aos homens, se considerarmos que essa igualdade havia sido consolidada apenas na Constituição de 1946, quando o voto, que era obrigatório somente para os homens, também se tornou obrigatório para as mulheres.
Mesmo que se adotasse como ponto de partida a edição do Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, quando as mulheres brasileiras não analfabetas (em sua esmagadora maioria brancas), com mais de quatrocentos anos de atraso em relação aos homens, finalmente foram autorizadas a votar (de forma facultativa), sabe-se que o exercício de seus tão recém conquistados direitos políticos foi interrompido por períodos de ditaduras e de retrocessos democráticos.
Infelizmente, o Brasil não está sozinho nesse abismo histórico e centenário imposto às mulheres, proibidas de exercerem qualquer tipo de liberdade pública por leis criadas pelo grupo minoritário - mas dominante - de homens majoritariamente brancos, cisgênero, cristãos, heterossexuais, detentores de renda e propriedades.
Na maioria dos países do Ocidente, inclusive nos berços das revoluções iluministas, as mulheres passaram a exercer algum tipo de direito ao voto - ainda que nem sempre em igualdade formal com relação aos homens - a partir do século XX: na Inglaterra, em 1918, nos Estados Unidos, em 1920, e, na França, somente em 1945.
Deveras, a desigualdade de gênero na política forjou a fundação da Democracia Moderna na Europa do século XVIII e já havia forjado a Democracia da Antiguidade dos gregos, desde o século V a.C., há mais de dois mil anos atrás.
Em ambos os casos, invocou-se estereótipos estigmatizadores dos papéis a serem desenvolvidos por cada um dos "sexos" na sociedade, baseados na lógica do patriarcado: enquanto as mulheres deveriam ficar restritas à esfera privada, às tarefas domésticas não remuneradas e aos cuidados de crianças, idosos e vulneráveis, por outro lado, aos homens caberia o livre e exclusivo gozo da vida pública, do poder político e do trabalho economicamente recompensado, como oficiais "provedores" do lar.
Isso porque, por muito tempo, convenientemente - para a manutenção da dominação masculina - pregou-se que, por força da natureza, o sexo feminino seria mais "frágil" e inferior em oposição ao sexo masculino, rotulando-se as mulheres como necessariamente dóceis, maternais, delicadas, submissas, dependentes, passivas, entre outras "qualidades" que as tornariam incapazes de qualquer atividade afeta às relações de força e poder na sociedade.
Daí a notoriedade que ganhou Simone de Beauvoir ao abrir o segundo volume de sua obra "O Segundo Sexo" com a afirmação: "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher". Ocorre que os papéis e estereótipos atribuídos ao gênero feminino não se dão em razão de seu sexo biológico de nascimento, mas sim decorrem de uma construção social, de milênios de opressão e restrição de liberdades e direitos civis e políticos que impuseram um abismo de desigualdades, discriminações e violências contra as mulheres, cujos reflexos se arraigaram de forma estrutural nas interrelações pessoais, familiares, econômicas, e nas próprias instituições.
Portanto, se a árdua batalha do movimento feminista pelo direito ao sufrágio universal só começou a surtir efeitos a partir da primeira metade do século XX, ainda assim, décadas depois, não se pode dizer que igualdade de participação necessariamente tenha se convertido em igualdade de representação.
A média mundial de mulheres eleitas nos parlamentos nacionais, de acordo com a União Interparlamentar, em outubro de 2023, era de apenas 26,7%, enquanto a média de representação feminina nos parlamentos das Américas era um pouco maior, de 34,7% . De todo modo, são percentuais baixos, se considerarmos que as mulheres são quase metade da população mundial e, em muitos países, como é o caso do Brasil, já compõem a maioria do eleitorado apto a votar.
Sob esse panorama generalizado de extrema desigualdade de gênero, o propósito do presente artigo é estudar como os direitos políticos das mulheres evoluíram desde a conquista do sufrágio universal, com foco em algumas das principais normativas, tanto no âmbito internacional como nacional, que buscam acelerar a ocupação paritária nos espaços de poder e de representação política.
Além disso, pretende-se estudar alternativas de sistemas eleitorais no Direito Comparado que poderiam ser mais favoráveis à implementação de políticas afirmativas efetivas para a concretização do ideal de uma democracia paritária e inclusiva no Brasil, posto que, como será demonstrado adiante, o modelo atualmente adotado na legislação brasileira está longe de alcançar resultados satisfatórios.
1. DIREITOS POLÍTICOS DAS MULHERES NO DIREITO INTERNACIONAL
Em setembro de 2015, por ocasião da celebração do 70º aniversário da Organização das Nações Unidas (ONU), 193 Estados-membros reunidos em Nova Iorque acordaram em fixar 17 novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável com 169 metas integradas e indivisíveis, em um plano de ação global a ser implementado até 2030.
Ao justificar a inclusão da igualdade de gênero como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem atingidos para a Agenda 2030, a ONU entendeu que não é possível pensar em sustentabilidade quando ainda se nega a metade da humanidade o gozo de seus plenos direitos e oportunidades, inclusive no que se refere à participação política. É o que se extrai do seguinte trecho do documento "Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável":
A efetivação da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas dará uma contribuição essencial para o progresso em todos os Objetivos e metas. Alcançar o potencial humano e do desenvolvimento sustentável não é possível se para metade da humanidade continuam a ser negados seus plenos direitos humanos e oportunidades. Mulheres e meninas devem gozar de igualdade de acesso à educação de qualidade, recursos econômicos e participação política, bem como a igualdade de oportunidades com os homens e meninos em termos de emprego, liderança e tomada de decisões em todos os níveis. Vamos trabalhar para um aumento significativo dos investimentos para superar o hiato de gênero e fortalecer o apoio a instituições em relação à igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres nos âmbitos global, regional e nacional. Todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres e meninas serão eliminadas, incluindo por meio do engajamento de homens e meninos. A integração sistemática da perspectiva de gênero na implementação da Agenda é crucial.
Note-se que a integração sistemática da perspectiva de gênero na implementação de todos os demais objetivos e metas da Agenda 2030 é vista como crucial para o seu sucesso, nas três dimensões de desenvolvimento sustentável almejadas: econômica, social e ambiental.
Desta feita, o 5º ODS da Agenda 2030 da ONU fixou-se em "alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas", o que exige:
5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública. (...)5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.
É consabido que as desigualdades de gênero na política e nos espaços de poder são parte de um conjunto de discriminações e violências sofridos pelas mulheres em diversos outros aspectos de suas relações interpessoais, sociais e profissionais.
Não é à toa que a terceira mulher a receber o Prêmio Nobel de Economia, desde que foi criado, em 1968, tenha sido a economista norte-americana Claudia Goldin, em outubro de 2023, justamente em razão de seus estudos sobre desigualdade de gênero no mercado de trabalho.
A pesquisa de Claudia Goldin levanta temas que há anos vêm sendo objeto de preocupação da comunidade internacional: a dupla jornada acumulada pelas mulheres, que permanecem como as principais responsáveis pelos trabalhos domésticos não remunerados e cuidados com os filhos e idosos, enquanto precisam também construir carreiras profissionais fora do lar, onde enfrentam disparidades salariais e menos oportunidades de ascensão com relação aos homens.
Como já dito alhures, e os estudos de Claudia Goldin também ressaltam, a discriminação dos papéis sociais e familiares atribuídos a homens e mulheres tem um efeito cascata em todas as demais searas, com reflexos extremamente nocivos à evolução civilizatória.
Nesse sentido, tanto a ONU como os demais organismos internacionais regionais já se debruçaram em inúmeras conferências e encontros sobre dados alarmantes de violência de gênero e estagnação na evolução dos direitos e liberdades das mulheres, tendo chegado à conclusão de que os Estados-membros somente conseguirão combater essa realidade quando passarem a adotar políticas e legislações efetivas para promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino em todos os níveis.
Com efeito, os esforços internacionais não são de hoje. Dois grandes marcos foram a (i) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 1979; e, há quase três décadas, em 1995, a (ii) IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, onde 189 (cento e oitenta e nove) Estados-membros da ONU, incluindo o Brasil, aderiram a um compromisso intitulado "Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher'', também conhecido simplesmente como Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (ou Beijing).
Entendendo que a igualdade na tomada de decisões é essencial para o empoderamento das mulheres, e que "o empoderamento da mulher e sua total participação, em base de igualdade, em todos os campos sociais, incluindo a participação no processo decisório e o acesso ao poder, são fundamentais para a realização da igualdade, do desenvolvimento e da paz", o documento coloca, entre as medidas a serem obrigatoriamente adotadas pelos Estados-membros, políticas afirmativas capazes de alcançar uma representação de paridade das mulheres e dos homens em todos os espaços de poder governamentais. Apenas a título de exemplo, vale a leitura de um trecho da Declaração, in verbis:
Objetivo estratégico G.1 Adotar medidas para garantir às mulheres igualdade de acesso às estruturas de poder e ao processo de decisão e sua participação em ambos.190. Medidas que os governos devem adotar:a) comprometer-se a estabelecer a meta de equilíbrio entre mulheres e homens nos organismos e comitês governamentais, assim como nas entidades da administração pública e no judiciário, incluídas, entre outras coisas, a fixação de objetivos específicos e medidas de implementação, a fim de aumentar substancialmente o número de mulheres e alcançar uma representação de paridade das mulheres e dos homens, se necessário mediante ação afirmativa em favor das mulheres, em todos os postos governamentais e da administração pública;b) adotar medidas, inclusive, quando apropriado, nos sistemas eleitorais, para estimular os partidos políticos a incorporarem as mulheres a postos públicos eletivos e não eletivos, na mesma proporção e nas mesmas categorias que os homens;c) defender e promover a igualdade de direitos das mulheres e dos homens em matéria de participação nas atividades políticas e de liberdade de associação, inclusive afiliação a partidos políticos e sindicatos;d) examinar o impacto dos sistemas eleitorais sobre a representação política das mulheres nos organismos eletivos e considerar, quando procedente, a possibilidade de ajustar ou reformar esses sistemas; (...) (grifos nossos)
Se, em 1979, os Estados-partes, incluindo o Brasil, já reconheciam, por meio da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que "a participação máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, o bem-estar do mundo e a causa da paz'', note-se que, a partir de 1995, com a Plataforma de Ação de Pequim, passou-se a ressaltar a necessidade de políticas afirmativas em favor das mulheres, em todos os poderes instituídos, o que pode também se traduzir em cotas temporárias e alterações direcionadas nos sistemas eleitorais, ao menos até o alcance da tão almejada paridade.
Na mesma direção, entre inúmeros compromissos internacionais que surgiram ao longo dos anos em prol da paridade de gênero nos espaços de poder e da adoção efetiva de políticas afirmativas, pode-se citar o Consenso de Quito, documento adotado durante a X Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2007; o Consenso de Brasília, assinado na XI Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2010; o Consenso de Santo Domingo, compromisso assumido na XII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2013; e a "Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero no Âmbito do Desenvolvimento Sustentável até 2030'', que resultou da XIII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2016, e que tem como um de seus objetivos: "estabelecer mecanismos que garantam a inclusão paritária da diversidade de mulheres nos espaços de poder público de eleição popular e designação em todas as funções e níveis do Estado".
Em 28 de novembro de 2015, na cidade do Panamá, o Parlamento Latino-Americano e do Caribe (Parlatino) aprovou, na sua Assembleia Geral de 2015, um Marco Normativo para consolidar a Democracia Paritária, reconhecendo que a paridade é uma das forças fundamentais da democracia, sendo imperioso, portanto, atingir a igualdade substantiva no poder, na tomada de decisões e nos mecanismos de representação social e política para erradicar a exclusão estrutural das mulheres.
De acordo com referido documento, baseado em dados, pesquisas e densos estudos, ainda falta muito para se atingir níveis satisfatórios de participação feminina nos espaços decisórios, não obstante os avanços até então alcançados na região da América Latina e do Caribe se devam à "inclusão de ações afirmativas - especialmente mediante a adoção de cotas de gênero nas legislações de diversos países - e, nos últimos anos, a aposta em medidas que levem à paridade (50-50)".
Sob essa premissa, o Brasil é um dos Estados-membros que se comprometeram a implementar cotas e políticas afirmativas que ajudem a acelerar o objetivo da igualdade substantiva em suas instituições, mas, como será demonstrado adiante, o que existe até o presente momento na legislação brasileira ainda se mostra insuficiente, inexistindo medidas que implementem a paridade nos parlamentos, principal impulsor de participação popular e representatividade nos Estados democráticos.
2. DIREITOS POLÍTICOS DAS MULHERES NO BRASIL
Nas últimas Eleições Gerais, ocorridas em outubro de 2022, as mulheres brasileiras corresponderam a 52,66% do eleitorado, mas foram apenas 33,83% candidatas, e isso ainda graças à Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, que, em seu artigo 10, §3º, garante que, para as candidaturas proporcionais ao Poder Legislativo, cada partido ou federação "preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo".
Imperioso destacar, contudo, que as cotas de reserva de candidaturas para mulheres, no Brasil, somente passaram a ser aplicadas pela maioria dos partidos políticos mais de dez anos depois da publicação da Lei n. 9.504/97, ou Lei das Eleições, como é conhecida popularmente.
Ocorre que a redação original do artigo 10, §3º, da lei supramencionada, estabelecia que cada partido ou coligação deveria "reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo" (grifos nossos). Com base na palavra "reservar", a interpretação adotada pelos partidos políticos era de que não seria necessário efetivamente apresentar mulheres candidatas nas chapas proporcionais, desde que suas vagas não fossem ocupadas por candidaturas masculinas. Ficariam, destarte, literalmente vagos os espaços reservados às mulheres.
Ou seja, a título de exemplo, suponha-se que um partido tivesse o direito de registrar 10 candidaturas (100%) para disputar as eleições municipais em determinada Câmara Municipal. Pela redação original da Lei n. 9.504/97, a interpretação dada era de que seria possível apresentar 7 candidaturas de homens (70%) e nenhuma de mulher, já que as 3 vagas (30%) que seriam destinadas às suas candidaturas estariam reservadas, embora não preenchidas efetivamente por candidatas.
Apenas com a edição da Lei n. 12.034, de 29 de setembro de 2009, que o artigo 10, §3º, da Lei n. 9.504/97, foi alterado para trocar o termo "deverá reservar" por "preencherá", e só a partir de então - em 2009! -, que a Justiça Eleitoral passou a barrar o registro de chapas 100% masculinas, com o indeferimento logo no protocolo do pedido de registro do DRAP (Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários) pelos partidos políticos. É o que se observa do excerto do julgado abaixo colacionado:
Registro de candidaturas. Percentuais por sexo. 1. Conforme decidido pelo TSE nas eleições de 2010, o § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei nº 12.034/2009, estabelece a observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo, o que é aferido de acordo com o número de candidatos efetivamente registrados. 2. Não cabe a partido ou coligação pretender o preenchimento de vagas destinadas a um sexo por candidatos do outro sexo, a pretexto de ausência de candidatas do sexo feminino na circunscrição eleitoral, pois se tornaria inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas eleições, com reiterado descumprimento da lei. 3. Sendo eventualmente impossível o registro de candidaturas femininas com o percentual mínimo de 30%, a única alternativa que o partido ou a coligação dispõe é a de reduzir o número de candidatos masculinos para adequar os respectivos percentuais, cuja providência, caso não atendida, ensejará o indeferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários (DRAP). [...] (Ac. de 6.11.2012 no REspe n. 2939, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
Já nas Eleições de 2010, portanto, os partidos que não conseguiram atender à proporcionalidade de no mínimo 30% de candidaturas de um gênero e no máximo 70% de candidaturas de outro gênero, foram barrados pela Justiça Eleitoral já no ato do registro, sendo instados a fazer os ajustes necessários, sob pena de indeferimento do DRAP.
A solução seria, destarte, ou preencher de fato as vagas com candidaturas femininas, ou diminuir o número de homens candidatos, até atingir a proporcionalidade almejada, certo? Lamentavelmente, porém, não foi essa a conduta adotada por uma parte considerável de dirigentes partidários.
O que ficou muito conhecido e difundido na mídia brasileira como candidaturas fictícias, "fantasmas" ou "laranjas", em verdade, são fraudes às cotas legislativas de gênero que muitas agremiações partidárias passaram a cometer simplesmente para não investir em candidaturas femininas viáveis, desde que foram obrigadas a de fato preencher no mínimo 30% das candidaturas nas chapas proporcionais com mulheres.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para se aferir a fraude às cotas de gênero, alguns indícios são considerados, como "votação ínfima, inexistência de atos efetivos de campanha, prestações de contas zeradas ou notoriamente padronizadas entre as candidatas", ao que se pode acrescentar também a realização de campanha para candidatos homens do mesmo partido ou federação, o repasse de recursos para candidaturas masculinas, entre outras ações que possam denotar o preenchimento meramente pro forma das vagas reservadas às mulheres, com a finalidade exclusiva de burlar a exigência legislativa, sem qualquer pretensão do partido em de fato investir esforços para a eleição dessas candidatas tidas como "laranjas".
Sobre o tema, vale trazer à baila um trecho da ementa do acórdão prolatado por ocasião do julgamento da ADI 6.338/DF, pelo Supremo Tribunal Federal:
Fraudar a cota de gênero - consubstanciada no lançamento fictício de candidaturas femininas, ou seja, são incluídos, na lista de candidatos dos partidos, nomes de mulheres tão somente para preencher o mínimo de 30% (trinta por cento), sem o empreendimento de atos de campanhas, arrecadação de recursos, dentre outros - materializa conduta transgressora da cidadania (CF, art. 1º, II), do pluralismo político (CF, art. 1º, V), da isonomia (CF, art. 5º, I). 8. A perpetração da fraude às cotas permite às agremiações o lançamento de maior número de candidatos, sem o efetivo adimplemento do percentual mínimo estipulado em lei, violando os valores constitucionais acima mencionados e tem efeito drástico e perverso na legitimidade, na normalidade e na lisura das eleições e na formação da vontade do eleitorado (CF, art. 1º, parágrafo único e art. 14, caput, § 9º). (ADI 6.338/DF, rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, sessão virtual, DJE de 4.4.2023).
Não há outra explicação senão a discriminação de gênero para que os dirigentes partidários, majoritariamente homens, resistam tanto em viabilizar candidaturas femininas, especialmente se for levado em consideração que, apesar de todas as barreiras enfrentadas, as mulheres representaram, nas Eleições de 2022, 46% (quarenta e seis por cento) das filiadas aos partidos políticos.
Além da cota de reserva de candidaturas, a legislação nacional prevê mais uma política afirmativa que vem sendo reiteradamente descumprida pelos partidos: trata-se da obrigatoriedade de que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos sejam aplicados na "criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional" (artigo 44, inciso V, da Lei n. 9.096/95).
Levantamento do jornal O Globo, realizado em 2022, revelou que os partidos políticos foram condenados pelo TSE a devolver aproximadamente R$ 65,1 milhões aos cofres públicos em função de irregularidades no uso da verba do fundo partidário de 2016, sendo que quase todos não teriam comprovado a aplicação de 5% dos recursos em programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Em 2020, segundo notícia divulgada pelo próprio TSE, 23 partidos políticos já haviam sido penalizados por não terem conseguido comprovar o investimento mínimo de 5% de recursos do Fundo Partidário na participação política de mulheres, quando do julgamento das contas referentes ao ano de 2014. Em 2019, ainda conforme o TSE, 25 partidos sofreram sanções pelo mesmo motivo, com relação às contas anuais de 2013.
Desde o advento da Lei n. 12.034/2009, que incluiu o inciso V ao artigo 44 da Lei das Eleições (Lei n. 9.096/95), que a maioria das legendas partidárias vem sendo incapaz de direcionar meros 5% de todo o montante dos recursos públicos que recebem do Fundo Partidário para programas que incentivem a participação política de mulheres. E por essa razão, além de desaprovação de contas, a Justiça Eleitoral vinha aplicando a sanção prevista no §5º do artigo 44 da Lei n. 9.096/95:
§5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.
Sem embargo, a resistência dos partidos políticos nacionais em aceitar cumprir minimamente com as cotas legislativas de gênero e políticas afirmativas com as quais o Brasil se comprometeu internacionalmente é tamanha, que conseguiram aprovar duas autoanistias, uma por meio da Lei n. 13.831, de 17 de maio de 2019, e outra, pasmem, por meio da Emenda Constitucional n. 117, de 05 de abril de 2022, proibindo a Justiça Eleitoral de aplicar sanções às agremiações fraudadoras.
Em um cenário de escandalosa violência política institucional cometida contra as mulheres neste país, não é de se estranhar que, malgrado estejam em maioria na base do eleitorado brasileiro, desde que conquistaram seus primeiros direitos políticos, há mais de 90 anos, as mulheres não tenham ainda conseguido chegar nem a 18% dos assentos no Congresso Nacional.
Aliás, até as Eleições de 2018, a Câmara dos Deputados sempre teve mais de 90% de homens em sua composição, mesmo com as cotas de reservas de candidaturas para mulheres vigendo desde 1997, com mais rigor a partir de 2009.
Para melhor entender a sub-representação feminina no parlamento brasileiro, o que, no mais, é uma métrica importante para se evidenciar o nível de participação política de mulheres no país, veja-se o quadro elaborado com base em dados das nove Eleições Gerais ocorridas desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, com o percentual das mulheres deputadas eleitas, em um universo total de 513 assentos:
TABELA 1 – QUADRO EVOLUTIVO DE MULHERES ELEITAS NA CÂMARA DOS DEPUTADOS
Se for adicionado o recorte racial à tabela acima, os números são ainda mais assustadores. Em 2018, foram eleitas apenas 13 mulheres negras deputadas federais, um percentual de 2,5% do total do parlamento. Já em 2022, esse número subiu para 29 mulheres negras eleitas, isto é, 5,65% do total, percentual ainda pífio se comparado à representatividade de mulheres negras na população brasileira em idade ativa (PIA), que é de 28,3%, o maior grupo social quando se considera os fatores gênero/raça.
Com 422 homens (82,26%) – em sua grande maioria brancos – deputados federais, em contraposição a apenas 91 mulheres (17,7%) deputadas federais, em outubro de 2023, o Brasil ocupava a posição 131º no ranking de participação feminina em parlamentos nacionais, na tabela divulgada mensalmente pela União Parlamentar. Muito abaixo dos demais países da América Latina e atrás também de países de tradições mais conservadoras e conhecidos pelas desigualdades sociais de gênero, como Paquistão (110º), Arábia Saudita (116º) e Somália (119º).
Parece ruim, mas poderia ser pior. Muito provavelmente as mulheres não teriam ultrapassado ainda a marca de 10% de assentos na Câmara dos Deputados, se não fossem algumas decisões jurisprudenciais que acabaram por impulsionar as candidaturas femininas já nas Eleições de 2018, quando houve um aumento percentual de 51% em relação a 2014: saltou-se de 51 para 77 deputadas federais eleitas.
Foi em 2018 que o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE n. 0600252-18/DF) proferiram decisões paradigmáticas, entendendo que as mulheres têm direito a cotas tanto de financiamento (Fundo Partidário e Fundo Especial de Financiamento de Campanha) como de tempo de visibilidade na propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV, na mesma proporção da apresentação de suas candidaturas, considerado o mínimo de 30%. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores também decidiram que tais cotas de financiamento e de propaganda devem ser distribuídas para pessoas negras, na exata medida proporcional de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).
As leis até então existentes obrigavam os partidos políticos a apresentarem pelo menos 30% de mulheres candidatas, mas isso não era garantia de que essas candidatas receberiam apoio efetivo de seus partidos. A maioria dos recursos de campanha e do tempo de propaganda nos meios de comunicação era distribuída para as candidaturas masculinas.
Em decorrência das decisões que passaram a exigir real investimento das agremiações partidárias em candidaturas femininas, é que o Congresso Nacional, dominado por homens e movido pela lógica de seus partidos, mobilizou-se em torno da Emenda Constitucional n. 117, de 05 de abril de 2022, que em seus artigos 2º e 3º anistiou partidos políticos fraudadores de cotas de gênero e raça.
Todavia, para compensar o escândalo, a mesma EC n. 117/2022, em seu artigo 1º, inseriu no texto da Constituição parte das cotas de gênero e políticas afirmativas já conquistadas por lei ou jurisprudência, in verbis: