Giovanni Bruno | Imagem: Arquivo
Accademia Italiana reconhece cozinha ítalo-paulistana

Accademia Italiana reconhece cozinha ítalo-paulistana

Il Sogno Di Anarello, Fasano, Gigetto, Capuano, são todos nomes conhecidos na cidade de São Paulo. A boa notícia, além do recente reconhecimento feito pela Accademia, é que o primeiro deles, fundado pelo saudoso Giovanni Bruno, vai reabrir em abril

A gastronomia de São Paulo tem mais um bom motivo para comemorar a sua pujança e o seu caráter cosmopolita. A rigorosa Accademia Italiana della Cucina, entidade internacional que tem como missão salvaguardar as tradições gastronômicas do país, reconheceu a cozinha ítalo-paulistano como uma identidade própria. O anúncio foi feito pelo delegado da entidade em SP, o italiano Gerardo Landulfo, que no ano passado participou dessa tomada de decisão em reunião com 30 representantes de delegações de países das Américas.



Giovanni Bruno - Arquivo

"No ano passado, durante a reunião, propus o reconhecimento da cozinha ítalo-paulistana como uma identidade própria, o que finalmente foi aceito", comemora Landulfo, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Foi um gesto simbólico, por enquanto, mas que conferiu, mais uma vez, a devida importância a uma cozinha que se confunde com a própria história da cidade.

Uma história muito rica e que começa com a imigração dos europeus a partir do início do século 20, particularmente dos italianos. Como, por exemplo, o caso das cantinas, que são restaurantes somente por aqui - na Itália, o nome é dado aos espaços onde se produz e comercializa vinho. Segundo a pesquisadora Silvana Azevedo, da Universidade de São Paulo (USP), especializada em cozinha italiana, a confusão começou muito tempo atrás, conforme relatou à Folha:

"Os imigrantes em São Paulo mantinham cantinas nos porões das suas casas, onde vendiam vinho a granel. Os homens levavam seus garrafões para encher, no fim do expediente, e sentavam para conversar. A mulher, que estava na cozinha, servia um pão ou uma minestra. Daí para que colocassem mesas e passassem a cobrar pela comida, foi um pulo."

Assim nasceu a cantina Capuano, um armazém de secos e molhados que virou restaurante e funcionou de 1907 a 2018, dando origem a toda uma geração de restaurantes que combinavam ambiente familiar e cozinha quase italiana -culpa da falta de ingredientes autênticos.

A partir de 1938, com a inauguração do icônico Gigetto, teve início outro movimento singular da colônia ítalo-brasileira. Contratado como ajudante geral em 1950, aos 13 anos, Giovanni Bruno chegou a garçom e, para agradar um cliente, inventou a receita do capelete à romanesca - um prato criado em São Paulo, assim como o conhecido filé à parmigiana.


Gigetto - Arquivo

Em 1967, Giovanni abriu o próprio restaurante, a Cantina do Júlio, na rua 13 de Maio, onde servia os mesmos pratos famosos do Gigetto, em salão decorado com camisas de futebol. Teve mais quatro estabelecimentos e, de suas equipes, saíram Pier Luigi Grandi, fundador da Cantina do Piero; João Lellis, criador da Lellis Trattoria; e Severino Barbosa da Silva, que abriu a Taberna do Sargento. Com eles, o estilo cantineiro foi tomando conta da cidade.

Em 1979, outro grande salto na carreira vitoriosa de Giovanni Bruno. Foi o ano em que ele abriu o Il Sogno Di Anarello, inicialmente nos Jardins. Em seu segundo e definitivo endereço - rua Timbui, 58, Vila Mariana - a rua foi rebatizada com o nome do restaurante, a pedido de alguns vereadores, atendido pelo então prefeito Jânio Quadros.


 Il Sogno Di Anarello - Arquivo

Os passos de Giovanni Bruno foram muito além dos salões de seus restaurantes. Figura muito querida da cidade - exemplo foi a mobilização dos vereadores - ele era presença constante em programas de TV e rádio. Lançou também uma biografia e o livro "Chefs do Coração", em 2004, no Jockey Club de São Paulo, em conjunto com o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas e com o apoio de um grupo de sócios do clube liderado pelo empresário Márcio Toledo.


Giovanni Bruno e Márcio Toledo no Jockey Club de São Paulo - Foto: Arquivo

Esse mesmo grupo logo depois assumiria o comando do tradicional clube de corridas de cavalos para um período de seis anos de revigoramento da entidade - inclusive no tocante a sua gastronomia, com origens históricas na França e na Itália. O próprio Giovanni Bruno colaborou com sua experiência para alguns desses eventos, assim como a comunidade da região do Abruzzo, na região central da Itália, que promoveu jantares e degustações voltadas à enogastronomia.

Criado na cultura dos restaurantes numa época em que ingredientes como manteiga, creme de leite e molhos mais pesados eram práticas comuns, o velho mestre da gastronomia paulista pensava longe e se aliava aos médicos do prestigiado Incor, procurando alertar para a adoção de uma alimentação mais saudável mas nem por isso "sem graça". Giovanni Bruno, ele próprio, cuidava da saúde nas dependências do Incor com o saudoso cardiologista Paulo Camargo Jr.


Giovanni Bruno, Mário Gimenes e Paulo Camargo Jr. - Foto: Arquivo

Na cronologia desses restaurantes que marcaram a culinária ítalo-paulistana, o Gigetto fechou definitivamente no início de 2016, sem maiores explicações dos membros da terceira geração da família do fundador, o italiano João Henrique Lenci. O Il Sogno Di Anarello prosseguiu após a morte de Giovanni Bruno, em 2014, aos 78 anos - justamente devido a complicações de problemas cardíacos - mas hoje se encontra fechado para reformas. A previsão é de reabrir no início de abril.

Foram do ambiente cantineiro, houve outro movimento em uma direção mais elitizada. De acordo com Silvana Azevedo, os primeiros restaurantes italianos que tentaram atrair a alta sociedade apelaram para o francês como forma de se diferenciar das cantinas. "Não era chique ser italiano. O Fasano, aberto em 1902, se chamava Brasserie Paulista e só assumiu o nome da família em 1948. Giancarlo Bolla, outro italiano, abriu em 1971 o La Tambouille, também com nome francês."

Hoje, são poucos os restaurantes paulistanos considerados genuinamente italianos pela Accademia Italiana della Cucina: Fasano, Gero, Picchi, Terraço Itália, Ristorantino, Tre Bicchieri, Santo Colomba, Vinarium, Lido Amici di Amici, Piselli, Sughetto e Supra.

"Só entram na lista os que têm ao menos 70% do cardápio composto por receitas autênticas, com primeiro e segundo pratos servidos separadamente. Na Itália, não existe esse estilo dois em um, com massa e carne juntos no prato", finaliza Gerardo Landulfo, da Accademia.