O guia proibido de Punta, por Josette Goulart e Marcelo Chello*

O guia proibido de Punta, por Josette Goulart e Marcelo Chello*

O lado secreto do luxuoso balneário uruguaio em 9 relatos: do vinho que não deveria existir ao amigo de Fidel

Por Josette Goulart e Marcelo Chello*
Colaboração para Nossa, de Punta del Este, Uruguai

Punta Del Este sempre foi sinônimo de luxo e exagero. Mas, por trás dos beach clubs onde uma poderosa parcela do PIB brasileiro brinda no verão e das porsches, ferraris, lamborghinis e maseratis, o balneário esconde histórias que desafiam as regras do turismo tradicional.

Aqui, o proibido não está nas placas de trânsito nem nos cassinos: está no detalhe que ninguém espera, naquilo que não deveria existir. Mas existe.

Em nove relatos, você vai descobrir um lado secreto de Punta que você pode conferir in loco a partir de uma viagem mais curta que uma descida de carro para as praias - 2h45, mais precisamente, o tempo de um voo direto SP-Punta del Este que vai operar neste verão.

O vinho que só rabinos podem tocar, o risoto que já foi privilégio de imperadores, um tannat branco que confunde a mente, a floresta que nasce das pedras, um hotel luxuosíssimo decorado com artigos de feira de pulgas e um museu inteiro erguido para provocar.

Bem-vindo ao guia que não deveria ser publicado.

O vinho proibido


Na Viña Éden, o silêncio da serra de Maldonado é tão profundo que, nas noites sem lua, o Cerro del Negro desaparece. Não se vê um palmo diante do nariz. A escuridão certamente inspirou as diferentes garrafas pretas que guardam o vinho produzido na vinícola.

Foi ali, em terroir idêntico ao de Champagne, que um casal de brasileiros ousou plantar vinhedos. O resultado foi o espumante mais premiado do Uruguai.

Mas o detalhe proibido do paraíso está em outro rótulo: o único vinho kosher produzido no país. Só os rabinos podem tocar, da uva que chega aos tonéis até o engarrafamento, obedecendo a uma tradição milenar. Eles rezam para fazer o vinho, e os enólogos, do outro lado de uma linha imaginária -uma fronteira invisível mas tão rígida quanto uma muralha -, rezam ainda mais para que o vinho dê certo.

Essa e outras histórias da bodega de Viña Éden dão um sabor especial ao momento da degustação: o espumante premiado, o albariño com brisa do mar, o tannat encorpado, o marselan que virou versão reserva feita em barril depois de um ataque inesperado de maritacas.

A experiência fica ainda mais exuberante com os acompanhamentos do recém-chegado chef Aurelien Bondoux, que carrega consigo o peso - e o brilho - de ser filho de uma lenda da gastronomia mundial: Jean Paul Bondoux.

É quando o vinho, a comida e a história se encontram que Viña Éden faz jus ao seu nome: um paraíso escondido na serra de Maldonado.

O arroz proibido


O Enjoy é resort de cassino, de Ferrari na porta, de xeique árabe que estaciona o Jaguar e leva seus animais para a mesa de jogo, de roletas girando no salão. Mas dentro da cozinha da chef Magali O'Neill mora um luxo insuspeito: o risoto negro feito com o "arroz proibido dos imperadores".

Cultivado na China há 5 mil anos para servir aos nobres, hoje o grão é produzido por uma fábrica artesanal na Itália e só pode ser usado por cerca de cem chefs no mundo. Todos eles figuram no guia internacional de risotos da Riso Gallo. Na América Latina, são apenas três. Magali é uma delas.

O arroz leva quarenta minutos para cozinhar. O dobro do tempo do tradicional arbóreo. O prato chega denso e escuro. É preparado com 'nduja, embutido calabrês feito artesanalmente em Maldonado, em câmaras de fermentação como na Itália, e recebe um toque final de fior di latte.

Mas tão importante quanto a história do arroz proibido é a louça que o acompanha. No restaurante St. Tropez, do Enjoy, ele é servido em um prato preto exclusivo, pintado à mão na França com ouro 24 quilates. O desenho se mistura ao alimento e, num primeiro olhar, parece até uma decoração criada pela própria chef com um molho qualquer.

Toda essa experiência só não passaria despercebida porque Magali circula pelo salão, parando mesa por mesa para contar a história de cada prato. Foi assim que imediatamente surgiu o desejo de provar o arroz proibido.

Se eu te mando só o arroz, não é a mesma coisa. A história dá alma ao prato"
Magali O'Neill, chef

A cor proibida


Um tannat branco é como um sol à meia-noite: não deveria existir. O vinho mais emblemático do Uruguai nasce tinto, pesado, denso. Mas na vinícola Cerro del Toro, nas cercanias de Piriápolis, em Maldonado, a uns 40 minutos de Punta del Este, alguém ousou virar a lógica ao avesso e pôs na taça um tannat de cor proibida.

Quando o Cerro del Toro serve o seu tannat branco, o paladar entra em curto. "O vinho é para causar um choque mental", diz o enólogo Martín Viggiano. E causa.

O que se espera encorpado vem leve. O que deveria ser tradição vira heresia. Não há notícia de outro tannat branco produzido no Uruguai. Quem quiser provar precisa se apressar: o vinhedo fez apenas algumas centenas de garrafas para testar a ousadia.

E se o azar for chegar tarde demais, não se preocupe. Em meio às brisas do Atlântico, até uma safra de uvas queimadas virou virtude: o vinho Singular, com notas de fumaça, prova que em Punta até o erro é proibido de dar errado.

As pulgas proibidas


O Fasano Las Piedras é pura arquitetura monumental no campo, spa reluzente e hóspedes que deslizam de carrinho de golfe. Tudo respira exclusividade. A começar pela pista de pouso para jatos particulares.

Mas o verdadeiro segredo está nos detalhes. Como abajures, móveis e a vasta biblioteca garimpada no famoso mercado das pulgas de Montevidéu e que decora o casarão antigo que estava lá antes de a arquitetura moderna do Fasano chegar ao local.

Depois do café da manhã ou no almoço, enquanto espera o peixe Brotola (o mais famoso do cardápio), o hóspede pode se deleitar com uma versão antiga e em espanhol do livro "Les Miserables", de Victor Hugo, ou abrir a coleção da "Enciclopédia Mexicana" ou, ainda, ler o bestseller "Berlín. La caída: 1945", de Antony Beevor.

O luxo não é ostentar. É confessar que as peças mais charmosas custaram tostões. Em Punta, até as pulgas são proibidas de parecer baratas.

A floresta proibida


Diziam que nada nasceria ali, no Cerro Punta Ballena. E eu acreditaria: basta olhar para os morros uruguaios para perceber que a natureza deles é serem feitos de pedras. O Cerro del Toro, pedra. O Cerro Negro, pedra. O Pan de Azúcar, pedra e uma cruz. Até o Fasano se chama Las Piedras. E para completar, nossa guia Mariella Volppe (com 30 anos de Ministério do Turismo) confirma: são todos de pedra.

Mas no fim dos anos 1800, Antonio Lussich, um navegador croata que se estabeleceu na região, resolveu desafiar essa sentença. E no meio das pedras saiu plantando árvores dos cinco continentes, como se quisesse recriar o mundo inteiro num só morro.

Começou pelo começo: as cicas revolutas, plantas que viviam na água nos tempos dos dinossauros e parecem palmeiras em miniatura.

"Estas, as cicadáceas revolutas, são da pré-história. Viviam no fundo do mar, assim como as samambaias. Quando a terra se tornou terra firme... foram as únicas, elas e as samambaias, que sobreviveram", conta Leticia Bentancur, guia do Arboretum Lussich (hoje, um parque público com mais de 500 espécies, das 1.500 que Antonio plantou em seus 1.800 hectares).

Cada árvore aqui é um contrabando botânico, uma afronta ao clima, ao tempo e à lógica. O proibido era acreditar que uma floresta pudesse existir.

Hoje, quem caminha pelo Arboretum Lussich respira um ar que não deveria estar ali, feito de eucaliptos que cheiram a limão, magnólias prestes a florir, araucárias que dão pinhas de até 100 kg, a árvore de papel da melaleuca e o perfume doce da casuarina, que chora à luz da lua cheia.

É uma floresta proibida porque não tinha o direito de existir. Mas existe.

Os amigos proibidos


Em Punta Ballena, a Casapueblo ergue-se branca e curva, como um ninho de passarinhos à beira do mar. Parece feita à mão. Desordenada. Os degraus, cada um a seu tamanho. Criada pelo falecido artista Carlos Páez Vilaró, é ao mesmo tempo casa, ateliê, museu e hotel.

Todos os dias, turistas se reúnem para ouvi-lo declamar um poema ao sol poente. A voz profunda de Vilaró, mesmo gravada, se une ao charme da língua espanhola e a poesia se faz, mesmo que cercada de muita gente:

Tchau, Sol...! Obrigado por nos fazer chorar, pensando que você também iluminou a vida dos nossos avós, dos nossos pais e de todos os entes queridos que já não estão mais entre nós, mas que continuam a desfrutar de você de outro patamar. Adeus, Sol...! Amanhã te espero outra vez"

Mas o que dá aura de proibido à Casapueblo é a lista de amigos ilustres do artista que passaram por ali: Fidel Castro, Isabel Allende, Che Guevara, Pelé, Vinicius de Moraes, Pablo Picasso, Henry Ford, Oscar Niemeyer, João Goulart.

Perambulando pelas curvas da Casa Pueblo, tem-se a epifania. O sol que brilha sobre Punta é, ao mesmo tempo, comunista, universal e exclusivo.

A obra proibida


O MACA é um deslumbre. Longe das praias de Maldonado, o Museu de Arte Contemporânea Atchugarry se espalha por 40 hectares de bosques, lagos e esculturas a céu aberto. Dentro, galerias monumentais projetadas por Carlos Ott parecem mais templos do que salas expositivas.

Não é só o mármore que intriga quem passa pelo MACA. As esculturas de Atchugarry se dobram, lembrando origamis gigantes. São cortes, pregas e fissuras que parecem impossíveis de serem feitas em materiais tão pesados.

Mármore de Carrara, bronze, alumínio pintado, ferro fundido. Atchugarry usa todos eles como se fossem papel. O mistério está em como ele transforma pedra e metal em obras que parecem feitas de ar.

Em um dos cantos do extenso terreno, se ergue uma galeria onde é possível comprar esculturas do artista. Mesmo as mais pequenas, alcançam valores de até 50 mil dólares. Sorte mesmo é chegar em Punta durante o verão e se deparar com o próprio Atchugarry em frente ao museu, esculpindo sua arte.

Mas o detalhe proibido do MACA está na capela construída especialmente para abrigar uma única escultura: a La Pietà de Pablo Atchugarry.

Maria segura o Cristo morto em mármore de Carrara, mas não do jeito que a igreja esperava. A obra, criada em 1982, foi encomendada como uma "Dolorosa" para uma igreja em Onno, na Itália. Quando Atchugarry apresentou sua versão, a resposta foi inesperada: expressiva demais, moderna demais, laica demais. A obra foi devolvida.

Três décadas depois, em 2014, a escultura encontrou destino definitivo no Uruguai. Foi recebida na Fundação Atchugarry e, desde 2022, com a inauguração do MACA, ganhou seu próprio espaço para ser venerada, uma capela também arquitetada por Carlos Ott.

Não foi a forma, mas a ousadia que a transformou em "proibida". E é nesse embate, entre tradição e ruptura, que nasce a força da La Pietà.

Nada é proibido


Saindo de Punta del Este a caminho do balneário de José Ignácio, os Hamptons do Uruguai, a paisagem arquitetônica vai mudando. Em algum ponto dos anos 2000, as casas quadradas viraram moda na região e tomaram conta do cenário.

Confesso que às vezes é difícil distinguir as casas de luxo das mais simples. Mas na beira do mar, José Ignácio abriga uma arquitetura muito distinta dos arredores: o Playa Vik, um hotel boutique arquitetado por Carlos Ott que lembra um barco.

Basta adentrar os muros de madeira para ter certeza de que nada é proibido no Playa Vik. Nem mesmo pendurar um retrato de madeira do empresário norueguês dono do hotel, Alexander Vik, assinado por Javier Abdala, dentro da parede de vidro do prédio principal do hotel. A depender do ângulo em que você se encontra no pátio, você encontra um Vik jovem ou envelhecido pelo tempo.

Na porta, Pablo Atchugarry te espera com uma obra de bronze em tons meio azulados, meio esverdeados, meio amarronzados, a depender dos olhos de quem a admira e da luz do dia ou da noite. Impressionante como a porta conseguiu absorver todas as cores das águas da costa de Maldonado. Quando se abre, surge um living que parece uma galeria de arte com o mar ao fundo, como uma extensão de uma piscina infinita. Bem no meio, um banco em forma de iceberg desenhado pela artista Zaha Hadid.

Subindo as escadas para o quarto Valentina, o principal do hotel, o banheiro te surpreende. Todo pintado a mão por Marcelo Legrand, com traços pretos para contrastar com o branco.

No Playa Vik, o proibido seria proibir.

O navio proibido


Em Punta del Este, o inusitado acontece. Num dos cruzamentos da península, não importa para qual lado você olhe: sempre há mar (ou rio) no fim da rua. E cada lado tem uma cor.

Bem na ponta, o Rio da Prata se encontra com o Atlântico. O rio é esverdeado, o oceano azulado, mas a depender do vento (e da sua sorte) a água pode se mostrar amarronzada (como a porta do Pablo Atchugarry).

De um lado, a Playa Mansa. Do outro, a Playa Brava. E no The Grand Hotel, basta escolher o quarto: você verá um ou outro. O que é certo é que 90% das suítes têm vista para o mar.

O hotel foi erguido como um transatlântico ancorado em terra firme. Proibido de zarpar. A arquitetura, os corredores, a decoração. Tudo foi pensado para que o hóspede se sinta dentro de um navio.

A suíte presidencial abre uma janela panorâmica para a Playa Brava. Na alta temporada, se os donos não estiverem ocupando o espaço, uma diária pode chegar a 13 mil dólares.

A segunda torre, inaugurada este ano, é ainda mais ousada. Já no saguão, uma cortina feita de placas de cortiça e alumínio balança com o vento. Outro painel, ainda mais ambicioso, cairá do vão de nove andares onde ficam os quartos: 70 quilos de alumínio que prometem um espetáculo à parte. Mas só se Leslie Shasha aprovar. Leslie é herdeira da rede e filha do fundador, James Shasha, iraquiano naturalizado americano. Ali, quem manda são os donos: se a matriarca não gostar, a obra é desfeita.

E se Punta proíbe pouco, no Grand Hotel até os hóspedes descobrem que as regras mudam conforme o vento.

Na cobertura, o bar Huma coroa o topo do prédio como a grande sala do capitão. Seu nome, em homenagem a uma ave mítica, simboliza renascer das cinzas. Referência direta ao incêndio que destruiu o espaço original. Hoje, é onde coquetéis são servidos como se fosse cabine de comando de um navio.

A nau nunca parte. Mas no Grand Hotel, cada detalhe insiste em te convencer de que navegar é proibido, e mesmo assim, inevitável.

Punta del Este não é só luxo: é contradição. O que parece impossível, floresce. O que deveria ser proibido, acontece. Aqui, cada vinho, cada pedra, cada obra lembra a mesma lição: sempre haverá alguém que ousa cruzar a linha invisível.

Este guia também tem seus guardiões. Mariella Volppe, do Ministério do Turismo, que desenhou o roteiro com a sabedoria de quem conhece cada pedra do caminho. E Aldo Facello, motorista dos ministros que nos conduziu pelas estradas de Maldonado.

Ambos se despedem agora, na última viagem antes da aposentadoria. Mariella a caminho de uma nova missão: levar as pessoas a conhecerem o Uruguai pelas histórias do vinho. Aldo a caminho do Rio de Janeiro: para conhecer a cidade maravilhosa pela primeira vez. A eles, nossa gratidão.

FIM

Uol
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