VEJA conferiu as gravações da superprodução que retrata o glamour e a violência da contravenção carioca
Por Amanda Capuano
Nos últimos meses, a Netflix provocou uma movimentação fascinante no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. O gigante do streaming escolheu aquele reduto tradicional para construir um cenário singular para sua mais nova superprodução brasileira: um cassino ilegal (e fictício) foi reproduzido dentro do estádio Ronaldo Luís Nazário de Lima - batizado em homenagem ao Fenômeno, que deu ali o pontapé inicial para sua carreira nos gramados. Foi lá, entre caça-níqueis cenográficos e trocas de tiros tensas e barulhentas, que VEJA acompanhou as gravações de Os Donos do Jogo, série sobre o universo dos bicheiros cariocas que chega no próximo dia 29 à Netflix com o status de maior produção nacional do ano na plataforma. "Recriamos o subúrbio carioca, que é onde estão os territórios mais ricos do jogo", explicou o diretor Heitor Dhalia - que buscou em fontes como imagens de batidas policiais a inspiração visual para construir o cassino improvisado (leia a entrevista).

INVASORES - Profeta (André Lamoglia, à dir.) e seu clã: disputa de poder com sangue (Marcos Serra Lima/Netflix)
Parte do imaginário popular, o jogo do bicho perdeu visibilidade nas últimas décadas, mas o interesse por ele foi reavivado recentemente com a série documental Vale o Escrito, do Globoplay, que colocou bicheiros reais em frente às câmeras. No cinema, o mundo da contravenção foi tema do recente filme Enforcados. Agora, a trama da Netflix se inspira nesse universo para narrar uma trama com ares de máfia italiana, na qual a sucessão do jogo provoca intrigas familiares, brigas, alianças e mortes violentas em nome do poder. "Estamos inaugurando na Netflix Brasil um novo gênero: o das séries de máfia com um 'carioquês' autêntico e uma máfia tropical que todo brasileiro vai reconhecer de imediato", aposta Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da plataforma no Brasil.

BASTIDORES - Juliana Paes: o papel das mulheres no mundo das apostas (Marcos Serra Lima/Netflix)

CÚPULA - Vale o Escrito: série mostra velha guarda real do jogo carioca (./Reprodução)
Nascida no interior fluminense, Juliana Paes - maior estrela feminina da série - teoriza que o jogo do bicho está arraigado no imaginário brasileiro de maneira quase folclórica. "Toda família de subúrbio tem um tio, uma avó que pergunta aos sonhos que bicho vai dar no jogo da semana", diz a atriz. É essa familiaridade que desperta interesse no público. Pintados muitas vezes como figuras peculiares, os bicheiros foram vistos durante muito tempo como senhores carismáticos, especialmente por causa da relação com escolas de samba. Por trás disso, no entanto, há um histórico de crimes de alto calibre, como execuções e sequestros. "Nos anos 1970, 80 e 90, o audiovisual tratou o bicheiro como um sujeito divertido, bonachão. A gente tem um outro olhar sobre isso, que encara a complexidade desse universo", diz o produtor Manoel Rangel.

REIS DA FOLIA - Chico Diaz (no centro): a relação dos bicheiros com o Carnaval (Marcos Serra Lima/Netflix)
Outro ponto tratado na série é que o jogo mudou com os anos: dos bilhetes premiados às maquininhas de caça-níqueis, a contravenção foi se modernizando até abraçar os cassinos on-line, que desafiam a lógica existente há décadas no esquema. Há também uma nova geração de bicheiros que cresceram cercados de luxo - realidade diferente da vida suburbana dos pais e avós. "Hoje, existem os polos em que se ganha dinheiro, que são a Zona Norte e os subúrbios, e o lugar onde se mora e se gasta o dinheiro: a Barra da Tijuca e a Zona Sul", diz Dhalia. Ao transformar figurinhas carimbadas da TV como Chico Diaz e Otavio Muller em bicheiros convincentes, a série mostra que os poderosos chefões nacionais invadiram novo e lucrativo território: o streaming.
"É a máfia brasileira"
Diretor de Os Donos do Jogo e DNA do Crime, Heitor Dhalia falou a VEJA sobre o universo dos bicheiros cariocas e o desafio de explorar o tema.

OLHAR - Dhalia: as mazelas do país expostas por meio da contravenção (Marcos Serra Lima/Netflix)
Os Donos do Jogo é uma história fictícia sobre o bicho. Por que decidiu abordar esse assunto? Eu estava no Rio de Janeiro e percebi que não se falava mais do bicho, que fez parte do imaginário de muitos brasileiros nos anos 1980. Daí surgiu a ideia de atualizar esse universo e apresentá-lo dentro do gênero ao qual pertence: o da máfia.
Como assim? O jogo do bicho é a máfia brasileira. Eles próprios endossam isso. Há festas de casamento com o tema de O Poderoso Chefão, quadros com a imagem de Don Corleone. São famílias com um código de ética, com influência no crime, divisão de território e disputas pelo poder.
E como a série diferencia o bicho de máfias tradicionais? É um universo tropical, essencialmente brasileiro. Há o Rio de Janeiro como cenário, a relação com o Carnaval. A ideia é olhar para o Brasil e inaugurar um novo gênero.
O senhor tem uma filmografia que se debruça sobre as mazelas do país. Qual o maior desafio disso? Preciso me manter conectado à vida no país para que cada produção seja relevante e atual. Em Os Donos do Jogo, o universo tratado e as pessoas mudam, mas os problemas nacionais são os mesmos.
Como vê a atual fase do audiovisual brasileiro? Não tenho complexo de vira-lata. Acho que conseguimos fazer igual aos americanos, às vezes até melhor. A diferença eram os recursos, que agora vêm aumentando. Mas não é uma vida fácil.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966
https://veja.abril.com.br/coluna/tela-plana/donos-do-jogo-os-bastidores-da-serie-da-netflix-sobre-bicheiros-cariocas/




