Ludimila Honorato
"Tem que pesar, não é para fazer assim", instruía Martino Malandrino, 89, enquanto o neto João Romeu, 25, colocava farinha de trigo na tigela com uma concha medidora. "Põe quatro ovos", seguia orientando.
O encontro de gerações presenciado por Nossa ocorreu na cozinha da casa de massas Malandrino, na Vila Clementino, zona sul da capital paulista. O que nasceu como pastifício em 1940, virou rotisseria e hoje agrega um restaurante a alguns passos de distância, na rua Capitão Macedo.
A bancada onde João preparava a receita é de granito e foi instalada pelo bisavô dele, Antônio Malandrino, que iniciou o negócio. Depois de pronta e cortada em tiras, a massa virou um tradicional fusilli al ferretto, em que a espiral é feita a mão com um ferro fino, também herdado do fundador.

Ali também estavam Analice, 62, e Marcelo Augusto, 23, respectivamente filha e neto de Martino, para demonstrar o preparo.
Perto deles, estava a máquina italiana de massas mais antiga do Brasil ainda em funcionamento - pelo menos de que se tem notícia. E no outro canto, um computador que registra os pedidos para delivery.
A cena reflete o que as três gerações têm feito para manter a história e o legado da família com o arrojo necessário para o negócio se adaptar aos novos tempos. O esforço é reconhecido: este ano, a casa recebeu o Selo de Valor Cultural, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, pela contribuição à gastronomia da cidade, ao lado de outros 38 estabelecimentos.
Uma oportunidade para viver
A família Malandrino veio da Itália para o Brasil no final dos anos 1930 junto com os Matarazzo, que trouxe uma máquina de fazer macarrão para uma exposição na cidade. Mas o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, impediu o retorno do equipamento para a Europa.
O Matarazzo era muito amigo do meu bisavô e disse pra ele comprar a máquina e deixar pro filho dele trabalhar. Minha família adquiriu e meu avô Antônio abriu essa empresa.

Se não fossem as mulheres
Analice lembra-se do nono Antônio como um homem muito reservado, organizado, metódico e trabalhador. "Ele ficou adoentado, mas nunca deixou de trabalhar", diz, recordando de quando desciam com ele sentado numa cadeira, sobrado abaixo, para a fábrica. "Ele ficava no salão e orientava."
A fábrica era só de massas, não tinha toda essa diversidade que tem hoje de antepastos, doces. Era só um pastifício mesmo e uma portinha pequena.
Quem começou a diversificar a produção foi Ermelinda, esposa de Antônio, que incorporou ao negócio as receitas da própria família. "A mulher antigamente não aparecia, mas ela contribuiu muito, fazendo os recheios de carne e ricota", prossegue.
Foi com ela que a empresa deu o primeiro avanço, oferecendo também bracholas, polpetones e almôndegas para acompanhar as massas. Analice faz questão de destacar essa figura importante na história familiar, assim como a presença de Catarina, irmã de Martino, que também contribuiu para o negócio, da cozinha ao balcão de atendimento. Hoje, ela tem um comércio gastronômico no imóvel ao lado da casa de massas.
Com afinco e todo o apoio, Antônio trabalhou no negócio por quase 40 anos. Ele teve doença de Parkinson, que limitou suas atividades, e morreu em 1977.
Cliente não se perde[
Martino começou a trabalhar na casa de massas por volta dos 12, 13 anos de idade, mas fez carreira no serviço público - é oficial de justiça aposentado. Incentivado pelo pai Antônio, resolveu se manter na empresa e, com um perfil diferente do patriarca, deu mais um passo no crescimento do negócio.

Analice o descreve como "um cara visionário, arrojado" e atento às novidades. Ele adquiriu novas máquinas - uma semelhante à primeira e outra que faz massas recheadas, também italiana - e daí vieram o restaurante, os doces e os pães.
Em 1965, uma reforma no imóvel da fábrica ampliou o negócio para o modelo de rotisseria. Nos anos 1970 e 1980, era inovação ter um espaço que vendia tudo. Os carros paravam em fila dupla em frente ao comércio, conta a família.
Mas o estilo trabalhador passou de pai para filho. "Sabe que horas eu entrava aqui no domingo? 4h30, 5h para começar a produção. Tinha um hospital que precisava de 15 kg de espaguete todo domingo, até 6h, pra fazer o almoço dos doentes", recorda Martino.
Foi com ele também que se firmou o lema de nunca perder um cliente: "não faço" ou "não tenho" inexistem no vocabulário deles. Em datas comemorativas, se for preciso, a família vende até o que é de consumo próprio. "Meu avô fala que aqui é uma casa de vendas. Se o cliente vier aqui e quiser, a gente vende", diz Marcelo. "Muitas pessoas, a gente ganhou assim."

Outros incrementos foram os recheios de alcachofra, gorgonzola, funghi e cordeiro. Mas a receita da carne para rechear massas é tradicional, feita em água, por horas, até secar. Nada de óleo ou panela de pressão. O molho do tomate vindo de pequeno produtor também é patrimônio e leva dois dias para ficar pronto.
Os clientes ficam pela tradição e cuidado no atendimento. A família cita nomes de quem frequenta o local semanalmente e diz que em datas comemorativas, o pedido de cada um é anotado e guardado em um caderno, mesmo que depois vá para o sistema digital. É tudo personalizado e não tem número mínimo de itens.
Tradição com novos rumos
Analice fez carreira como delegada, trabalhando nas linhas do Metrô e da CPTM, e está aposentada. Há oito anos, entrou no negócio da família ao perceber que o pai, com a idade, precisava de ajuda.
Hoje, ele não toma decisões na empresa, mas acompanha os trabalhos de perto. Chega todos os dias por volta das 11h com seu jornal na mão, visita a cozinha, dá pitaco e depois vai conversar com a clientela da loja. No dia em que a reportagem esteve no local, a maioria o cumprimentava pelo nome e alguns sentavam para uma prosa breve na calçada.
No restaurante, Martino não perde tempo. "Ele limpa a mesa, recolhe bandejas, atende quando dá uma movimentada. Tem dias que ele não está muito firme, aí fica organizando fila, fazendo algo mais leve. Ele quer fazer parte", conta João. "Não quer que o vejam parado."
Quem também ajuda a manter a tradição são os funcionários mais antigos da casa, como Sandra e Holanda, que estão há quase 40 anos ali. Outros mais novos são filhos de ex-colaboradores que chegaram a ter contato com o fundador.

João se formou em gastronomia e planeja incluir as pizzas na história do Malandrino. Marcelo é advogado e atua em toda a logística de compras do estabelecimento. Enquanto a transição não se conclui, Martino e seu legado permanecem. "A gente tenta seguir os ensinamentos dele o máximo possível, mas tem que encaixar uma novidade no meio", diz João.
Serviço
Endereço: Rua Capitão Macedo, 176 - Vila Clementino
Instagram: @malandrinorestaurante
Uol
https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2025/07/06/restaurante-malandrino.htm