Pizza da AssociazioneVerace Pizza Napoletana, feita em Brasília - Facundo Fotografia/Divulgação |
Italianos vêm ao Brasil pregar a palavra da pizza napolitana

Italianos vêm ao Brasil pregar a palavra da pizza napolitana

Escola vai ensinar cartilha da associação que zela pela tradição de Nápoles; método contribui com a qualidade, mas gera críticas

Marcos Nogueira
BRASÍLIA


A poeira vermelha brasiliense já começava a cobrir os mocassins italianos quando Attilio Bachetti, de avental imaculadamente limpo, assumiu o forno no gramado atrás da Baco Pizzaria, na Asa Sul.

Ele não chega a ser um Maradona, mas goza de alguma celebridade em Nápoles. Recomendada pelos guias Michelin e Gambero Rosso, a pizzaria Da Attilio vive lotada desde 1938 (quando foi fundada por outro Attilio, avô do pizzaiolo).

Detrás de um cercadinho improvisado com dois fornos a lenha, Attilio era a estrela da festa. Tirava pizzas marinara -apenas tomate, alho, azeite e orégano- que alcançavam o pináculo da alimentação vegana mundial humana.

Revezavam-se nos fornos outros 14 profissionais. Em comum, todos estavam lá para propagar a palavra da AVPN -Associazione Verace Pizza Napoletana, desnecessário traduzir.

O evento em Brasília, com vinho, cerveja, discursos e pizza a rodo, celebrava a assinatura de um convênio entre a associação e o Senac do Distrito Federal. A partir de 2026, a parceria pretende oferecer um curso profissionalizante para a formação de 250 pizzaiolos por ano.

Quem se matricular no Senac-DF será instruído de acordo com o estatuto da AVPN, "disciplinare" em italiano: livreto com diretrizes muito detalhadas para o preparo de uma pizza chancelada pelo consórcio.

A placa da AVPN numa pizzaria é vista por muitos no setor como um atestado de qualidade. Não escapa, porém, de críticas relacionadas à postura assumidamente doutrinadora e ao alegado caráter restritivo da cartilha napolitana.

Faz bem contextualizar os propósitos da associação à época de sua fundação. Falemos de 1984.
Naquele ano, 17 famílias influentes no negócio da pizza napolitana sentaram-se à mesa e discutiram ações para combater um fenômeno que as incomodava.

"Havia a sensação de que muitas pizzarias em outras partes da Itália se intitulavam napolitanas para atrair clientes", conta Antonio Pace, fundador e presidente da AVPN, que veio ao Brasil para a assinatura do convênio. "Mas ofereciam um produto que nada tinha a ver com a pizza napolitana."

De acordo com Pace, a associação nasceu com dois objetivos: salvaguardar a paternidade da pizza para Nápoles e difundir pelo mundo a tradição da pizza feita nessa cidade italiana.

A pizza napolitana, que deu origem a vários estilos posteriores (inclusive o paulistano), tem por características mais evidentes a massa macia e a cobertura parcimoniosa -para os italianos, equilibrada; para os padrões brasileiros, espartana.

PARA CADA PIZZA, UMA TEMPERATURA


  • Napolitana - 430º C a 485ºC
    O calor extremo assa a pizza em pouco mais de um minuto, o que preserva a umidade e a textura macia da massa

  • Paulistana - 350ºC a 400ºC
    O calor forte resulta numa pizza crocante, mas ainda com um grau elevado de umidade. Não há um manual de instruções como o da AVPN

  • Romana e Estilo Nova York - 250ºC a 300ºC
    A temperatura moderada e o tempo mais longo no forno faz pizzas com a base firme e crocante. As fatias não colapsam quando seguradas pela borda

  • Chicago Deep Dish - 220ºC
    Assada em temperatura de forno caseiro, esta pizza apresenta a textura semelhante à de uma torta

No final do século 19, essa pizza viajou com imigrantes para lugares como São Paulo, Nova York e Buenos Aires. Adaptou-se às particularidades de cada local e, na virada do milênio, já não era a mesma pizza que se comia em Nápoles.

Foi quando a pizza de estilo napolitano raiz, que parecia ser uma tendência sazonal nos Estados Unidos, começou a ganhar o mundo. Foi também quando a AVPN apostou alto na expansão internacional.

No Brasil, as primeiras casas a receber a certificação foram a Speranza e a Bráz -ambas de São Paulo, ambas no início dos anos 2010. Elas perderiam em pouco tempo o selo AVPN, pois as exigências dos napolitanos não eram compatíveis com a operação das pizzarias -duas representantes robustas do estilo paulistano.

Uma pizza recém-assada, com queijo derretido e folhas de manjericão, está sendo retirada de um forno. A pizza é colocada em uma superfície escura e está soltando vapor. Ao fundo, várias pessoas estão em um ambiente de festa ou evento, algumas usando bonés azuis, e há mesas com comida.
Pizza da Associação da Verdadeira Pizza Napolitana, feita em evento que criou um convênio com o Senac. - Facundo Fotografia/Divulgação

Deco Lima, da Bráz, que não se entusiasmou com a novidade, foi voto vencido entre os sócios. "Não que eu não goste de pizza napolitana, até gosto." Ele pondera, porém: "Entre uma coisa mole e uma crocante, eu fico com a crocante."

Tito Tarallo, da Speranza, diz que a textura não-crocante da massa confundiu e desagradou seus clientes. "Eles esperavam algo parecido com o que a gente já fazia, só que melhor."
Timing ruim. O mercado, imaturo àquela altura, logo aceitaria aquela pizza macia, contida, de fácil digestão.

Em meados de 2012, a brasiliense Baco seria aprovada pelos caciques napolitanos -detém a carteirinha nº 424 da AVPN, hoje a mais antiga do país.

Com a Baco, a AVPN ganhou um tenaz soldado em solo auriverde. Gil Guimarães, dono da pizzaria, tornou-se empenhado e empolgado defensor do método da associação.

"As diretrizes da AVPN não surgiram do nada: são fruto de um trabalho histórico e técnico muito sério, desenvolvido em parceria com a Universidade de Nápoles", afirma Guimarães. "Pesquisadores estudaram a fundo as propriedades da farinha, o processo de fermentação, a ação do calor do forno."

André Guidon, sócio nº 472, foi o primeiro aluno brasileiro da AVPN, em 2008. Ele já atuava como embaixador da associação bem antes de abrir a primeira unidade da Leggera, em Perdizes, zona oeste de São Paulo.



A pizzaria de Guidon, certificada em janeiro 2014, representa um ponto de virada: foi com ela que o orgulhoso consumidor paulistano aprendeu a não apenas apreciar, mas a desejar uma pizza sem raízes no eixo Brás-Bixiga.

Presidente da delegação da AVPN no Brasil (Gil Guimarães é o vice), o sócio da Leggera nega que o livreto de diretrizes seja restritivo. "Atuando como escola, a associação precisou estabelecer parâmetros, não regras", diz.

Escola: voltamos ao tema que trouxe a delegação da AVPN à cruel umidade relativa do ar no Planalto Central.

A própria associação mantém um curso livre para pizzaiolos em Canela (RS), sob a batuta do pizzaiolo certificado Peterson Secco. Entre 2020 e 2022, André Guidon lecionou em São Paulo. Mas desta vez, promete o Senac, tudo será diferente.

"Em todas as minhas turmas", conta Guidon, "nunca vi um jovem em busca de formação profissional". Os alunos, segundo ele, se encaixavam em três categorias: donos de pizzaria, pessoas interessadas em abrir pizzaria e gente que tinha a pizza como hobby.

"A gente não quer pegar apenas os entusiastas", afirma Vítor Correa, diretor do Senac-DF. "Vamos investir em profissionalização, inclusive com bolsas de 100% para atrair alunos de baixa renda."

O diploma dos formandos terá o timbre da AVPN -que funciona como carta de recomendação, nada mais. Se vierem a trabalhar com pizza napolitana, ponto para o Senac e a AVPN. Se não, ótimo também: conhecimento nunca é demais.

De mais a mais, é como diz Gil Guimarães, da Baco: "Só existem dois tipos de pizza, a boa e a ruim".

Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/comida/2025/07/italianos-vem-ao-brasil-pregar-a-palavra-da-pizza-napolitana.shtml