O interregno, o novo ciclo e as disputas que se abrem

O interregno, o novo ciclo e as disputas que se abrem

"Antonio Gramsci, pensador italiano do século XX, descreveu com precisão momentos de transição como o que vivemos atualmente, chamando-os de "interregno". Nessa fase, o velho ainda não desapareceu completamente, e o novo ainda não se estabeleceu de maneira definitiva."

Por João Antonio da Silva Filho

Nos últimos séculos, o mundo ocidental percorreu um longo caminho de evolução civilizatória, marcado por avanços significativos que moldaram nossa sociedade. Desde o período filosófico na Grécia Antiga, que inaugurou a busca pelo entendimento racional e ético da existência humana, até o direito romano, que fundamentou princípios jurídicos que regem as sociedades ocidentais até hoje, a humanidade construiu as bases do pensamento crítico e do convívio social. O avanço continuou com a contribuição dos escolásticos na Idade Média, a difusão dos ideais iluministas no século XVIII, a revolução industrial e as mudanças econômicas e sociais dela derivadas, a Revolução Francesa com seu impacto sobre direitos e cidadania e, finalmente, o surgimento do marxismo, que trouxe à tona questionamentos sobre as desigualdades econômicas e inspirou revoluções em todo o mundo.

Após esse ciclo de profundas transformações, entramos em um novo momento histórico: a revolução tecnológica. Este ciclo atual influencia radicalmente as relações intersubjetivas, transformando as maneiras como produzimos, consumimos e nos relacionamos uns com os outros e com a coletividade. A tecnologia está reformulando a produção industrial por meio da automação e da inteligência artificial, enquanto a agricultura se torna cada vez mais dependente de ferramentas digitais e métodos automatizados para aumentar a produtividade. A distribuição mercadológica, impulsionada pelo e-commerce e pela logística digital, ganha novos contornos, e o consumo de informação é instantâneo e amplificado pela internet e redes sociais, moldando a maneira como interpretamos o mundo.

Esse cenário também provoca mudanças nas relações entre indivíduos e entre os indivíduos e a sociedade. A mediação digital redefine o convívio, levando a uma comunicação intersubjetiva mais direta, porém muitas vezes superficial e fragmentada. As redes sociais, por exemplo, modificam o comportamento social, proporcionando ao mesmo tempo espaços de união e polarização. Nas relações de trabalho, a intermediação tecnológica muitas vezes despersonifica as conexões, ao mesmo tempo em que abre novas oportunidades de empreendedorismo e inovação. No entanto, esses avanços, ao mesmo tempo que impulsionam novas formas de conexão, trazem o desafio de manter a profundidade e a empatia nas relações.

Antonio Gramsci, pensador italiano do século XX, descreveu com precisão momentos de transição como o que vivemos atualmente, chamando-os de "interregno". Nessa fase, o velho ainda não desapareceu completamente, e o novo ainda não se estabeleceu de maneira definitiva. Este é o ponto crucial em que nos encontramos: um período de incertezas e disputas, onde o mundo busca encontrar sua nova direção. As estruturas e valores da era industrial e da modernidade ainda se mantêm, mas cada vez mais desgastados e desafiados pelas inovações tecnológicas e pelos questionamentos sociais e ambientais.

O mundo que emergiu após a Segunda Guerra Mundial, marcado pela bipolaridade entre as potências ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, encabeçado pela União Soviética, já não existe mais. A tensão entre capitalismo liberal e socialismo moldou o século XX, polarizando o globo e influenciando o desenvolvimento das nações. Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, o mundo entrou em um novo cenário, no qual os Estados Unidos e o capitalismo se consolidaram como o modelo predominante, enquanto o socialismo passou a buscar novos caminhos.

No entanto, as disputas ideológicas sobre o rumo da humanidade não desapareceram. Embora o bloco socialista tenha se desmantelado, a busca por uma sociedade mais justa e equitativa persiste. O capitalismo, com seu foco em crescimento econômico e eficiência, ainda se mostra eficaz na geração de riqueza, mas também expõe sérias falhas, como as crescentes desigualdades sociais e a exploração de recursos naturais. Por outro lado, o socialismo, ainda que reconfigurado, continua a defender a humanização das relações sociais e uma distribuição mais equitativa das riquezas, atraindo aqueles que buscam um sistema alternativo.

A polarização entre ideais liberais e socialistas permanece, agora adaptada a um mundo onde as relações sociais e econômicas são mediadas pela tecnologia. De um lado, o capitalismo liberal avança com suas inovações tecnológicas e expansão de mercado, enquanto do outro, o socialismo, ainda que menos centralizado, tenta promover o bem-estar coletivo em meio aos desafios do século XXI. A convivência dessas forças revela que o caminho para o futuro continua incerto, e as tensões sociais e políticas refletem a resistência dos ideais de cada lado.

Diante desse cenário, cabe à humanidade refletir sobre o tipo de sociedade que deseja construir. O novo ciclo tecnológico oferece ferramentas poderosas, mas é necessário que sejam usadas com propósito e responsabilidade. Se este interregno nos ensina algo, é que estamos em um ponto de virada, onde as decisões tomadas hoje influenciarão o rumo da sociedade nas próximas décadas. A escolha entre um modelo que apesar do seu dinamismo produtivo gera desigualdade, e outro que busca a justiça e a solidariedade, pode definir a qualidade de vida e os valores que prevalecerão nas gerações futuras.

O novo ciclo da revolução tecnológica, apesar de suas imensas promessas, também nos confronta com desafios éticos e sociais complexos. Em meio ao avanço das tecnologias digitais e à automação de processos, um dos principais desafios que a humanidade enfrenta é impedir que a desigualdade se normalize como uma consequência inevitável do progresso. Mais do que nunca, é essencial rejeitar o individualismo competitivo, que prioriza os interesses particulares em detrimento do bem comum, e promover um modelo de Estado que se comprometa com o desenvolvimento integral, respeitando e incentivando os múltiplos aspectos do ser humano - econômico, social, educacional, cultural e ambiental.

Para alcançar esse ideal, é fundamental direcionar os avanços tecnológicos de maneira a desconcentrar as riquezas, ampliando o acesso a oportunidades e distribuindo os frutos do progresso de forma mais justa. Isso requer políticas que regulem o impacto das novas tecnologias e evitem que estas sirvam apenas aos interesses de uma pequena elite econômica. Tecnologias como a inteligência artificial e a análise de dados oferecem possibilidades inéditas de eficiência e produtividade, mas, sem uma gestão orientada pelo interesse coletivo, elas podem reforçar disparidades, permitindo uma centralização ainda maior de poder e recursos.

Outro aspecto importante é a necessidade de restringir o uso dos algoritmos para alimentar um consumo dissociado das necessidades e interesses coletivos. Nas redes sociais e plataformas digitais, os algoritmos de recomendação frequentemente induzem comportamentos de consumo que não refletem uma demanda real da sociedade, mas sim uma tentativa de maximizar o lucro a qualquer custo. Isso distorce o papel do consumo, que deixa de ser uma ferramenta para satisfazer necessidades e se torna um fim em si mesmo, gerando impactos ambientais, psicológicos e sociais adversos.

Diante desse cenário, cabe ao Estado desempenhar um papel ativo e regulador, promovendo uma estrutura que valorize o bem-estar coletivo em vez da competitividade individual. Isso envolve políticas que fomentem a educação e a formação de cidadãos críticos e conscientes, capazes de navegar no ambiente digital sem se tornarem reféns de estímulos artificiais ao consumo. O desenvolvimento integral deve ser priorizado, de forma que as tecnologias sirvam como ferramentas para a emancipação social, e não como instrumentos de manipulação e exclusão.

Além disso, a redefinição do papel do Estado é crucial para a construção de um sistema econômico que considere o impacto social das decisões empresariais e tecnológicas. Incentivar modelos de negócio que adotem práticas de responsabilidade social, tributação progressiva e estímulo a investimentos em áreas de baixa renda são algumas das políticas que podem ajudar a reduzir a desigualdade e promover um crescimento mais equitativo. Esse modelo visa não só distribuir melhor a riqueza gerada, mas também incentivar a participação ativa da população na construção de uma economia mais inclusiva.

A revolução tecnológica precisa ser orientada para a criação de empregos dignos, a valorização da diversidade e o fortalecimento das comunidades. A automatização de postos de trabalho, inevitável em algumas áreas, pode ser compensada por investimentos em novas habilidades, permitindo que os indivíduos se adaptem às mudanças sem perder sua dignidade e estabilidade. Nesse contexto, o Estado pode se tornar um facilitador, oferecendo capacitação e apoio a empreendedores e inovadores que promovam a inclusão e o desenvolvimento sustentável.

Esse novo ciclo, portanto, só será verdadeiramente revolucionário se for capaz de promover a igualdade, a justiça e o bem-estar coletivo. A sociedade precisa insistir em um modelo de desenvolvimento que coloque o ser humano no centro, acima dos interesses de mercado. Isso significa fortalecer os valores de cooperação, solidariedade e sustentabilidade, utilizando a tecnologia para elevar a condição humana em todos os sentidos, garantindo que o progresso seja não apenas econômico, mas também social e ético.


JOÃO ANTONIO DA SILVA FILHO é mestre em filosofia do direito e doutor em direito público, conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e vice presidente da ATRICON - Associação dos Membros dos Tribunais do Brasil.

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