Cartaz sendo carregado durante ato na Avenida Paulista pelo fim da escala 6x1 - Bruno Santos - 15.nov.24/Folhapress |
Uma proposta fora da nossa realidade

Uma proposta fora da nossa realidade

  • Buscar qualidade de vida é legítimo, mas reduzir a jornada por decreto terá efeito oposto ao desejado
  • Antecipar redução sem enfrentar dilemas estruturais da economia brasileira é uma aposta arriscada

Solange Srour

A redução da jornada de trabalho voltou ao centro do debate público após a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovar uma proposta de emenda à Constituição que prevê o fim da escala 6x1, com a redução gradual da carga semanal. Pelo desenho em análise, o limite máximo cairia inicialmente para 40 horas e, depois, seria reduzido de forma progressiva até alcançar 36 horas, ao longo de um período de transição de cinco anos. A busca por melhor qualidade de vida é legítima. O problema surge quando essa agenda é dissociada das restrições econômicas e institucionais que moldam a realidade brasileira.

No formato proposto, a medida tende a elevar o custo do trabalho. Ao combinar jornadas menores com férias remuneradas, feriados nacionais, estaduais e municipais, além de outros dispositivos previstos na legislação, o número de dias não trabalhados -e ainda assim remunerados- torna-se extremamente elevado. Em uma economia de baixa produtividade, como a nossa, o resultado tende a ser a perda de competitividade, menor grau de investimento e avanço da informalidade.

O exemplo internacional ajuda a colocar o debate em perspectiva. Ao longo das últimas décadas, a Europa optou por trabalhar menos horas por semana do que os Estados Unidos. Essa escolha, em grande medida, ajuda a explicar o hiato persistente entre o desempenho do PIB europeu e o americano. Vemos ali um trade-off claro: mais tempo livre e maior proteção social, mas crescimento econômico mais contido.

Mesmo nos países europeus em que a redução da jornada foi relativamente bem-sucedida, o caminho seguido é bastante distinto do que se discute no Brasil. No Reino Unido e na Islândia, as experiências ficaram restritas a setores de alta produtividade e decorreram de acordos negociados, não de imposições legais amplas. Na Alemanha, a jornada média caiu gradualmente ao longo de décadas, acompanhando os ganhos de produtividade e preservando a competitividade das empresas.

Já o caso francês serve de alerta. A redução da jornada elevou o custo por hora trabalhada, não gerou criação líquida de empregos e levou parte dos trabalhadores a buscar ocupações adicionais para recompor renda. Os ganhos esperados de bem-estar e produtividade ficaram aquém do esperado.

No caso do Brasil, a posição nesse debate é muito mais frágil. Segundo a OCDE, a produtividade por hora trabalhada permanece em torno de US$ 18 a US$ 20, patamar distante do observado nas economias que hoje conseguem avançar para jornadas mais curtas, onde a produtividade gira em torno de US$ 70 por hora.

A reforma trabalhista de 2017 buscou ampliar o espaço para a negociação entre empregadores e empregados, permitindo maior adaptação das jornadas à realidade de cada setor e das próprias empresas. A lógica reconhece que um mercado de trabalho heterogêneo exige arranjos flexíveis, capazes de acomodar diferenças de produtividade, tecnologia e organização do trabalho. Na prática, porém, esse modelo tem enfrentado resistência do próprio Judiciário, que por vezes anula acordos legítimos ou contratos de terceirização previstos em lei. Esse ambiente reduz os incentivos à formalização e à negociação, justamente em um momento em que novas tecnologias demandam reorganização de processos, redefinição de funções e maior flexibilidade na alocação do trabalho.

A redução da jornada é um tema legítimo, mas não pode ser o ponto de partida. Antecipar esse movimento sem antes enfrentar os dilemas estruturais da economia brasileira é uma aposta arriscada. Para o Brasil, o caminho passa por estabilidade fiscal e institucional, investimentos em educação e tecnologia, elevação do capital humano e atração de investimentos produtivos.

Sem esses pilares, reduzir a jornada por decreto tende a produzir exatamente o efeito oposto ao desejado: mais custos, mais informalidade e menos crescimento. A ordem do desenvolvimento econômico importa -e invertê-la costuma sair caro.

Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/solange-srour/2025/12/uma-proposta-fora-da-nossa-realidade.shtml