É hora de dar poder e caneta àqueles que sempre bateram na tecla de que a emergência climática era uma realidade
Por Vera Magalhães
Não há dúvida de que a forma como Jair Bolsonaro conduziu o enfrentamento à pandemia de Covid-19 foi fator crucial para sua derrota em 2022. A tragédia no Rio Grande do Sul, mesmo localizada em apenas um estado da federação, representa para o governo Lula 3 um desafio de igual magnitude: definirá a capacidade da administração de responder a uma tragédia e de dar respostas de longo prazo a uma nova realidade nacional e global relacionada à emergência climática.
Na largada, a resposta do governo petista já difere frontalmente daquela dada por Bolsonaro por não minimizar a crise, não negar sua gravidade e não demonstrar falta de empatia com a população. É o que distingue um governo negacionista, como o anterior, daqueles que têm apreço à ciência e reconhecem a agenda ambiental como aspecto central da gestão econômica, e não coisa de "ativista" ou de ONG.
Isso é, por assim dizer, o básico. Mas, diante de catástrofes, a capacidade de resposta do poder público parece sempre insuficiente. Tanto Lula quanto os governos do estado e dos municípios serão, de agora em diante, permanentemente questionados sobre essa insuficiência. A real e aquela insuflada pelas narrativas da oposição.
O que já não é uma gestão de crise fácil, pelas múltiplas frentes em que o poder público é forçado a atuar (e a gastar) com urgência e eficácia, se torna um terreno ainda mais pantanoso pela necessidade de convencer a população já traumatizada com o colapso da vida cotidiana em todas as suas dimensões a aderir às medidas e, ainda mais difícil, a aprová-las.
Político testado em muitas crises, inclusive aquelas que levaram à descida ao inferno pessoal, com a condenação e prisão depois revertidas, Lula demonstra sentir a gravidade da quadra histórica que marcará seu terceiro mandato e, com certeza, terá peso decisivo sobre as chances de ele vir a obter um quarto. Tem cobrado dos ministros propostas que abranjam as carências absolutas que acometerão todas as regiões do estado, quase sem exceções.
Já é evidente, a esta altura, que a retirada das ações de socorro ao estado da meta fiscal de 2024 é apenas uma formalidade. Esses gastos certamente terão impacto sobre todo o restante do Orçamento e já fizeram letra morta de qualquer plano de investimentos de programas como o PAC. Ter de reconstruir uma unidade da Federação praticamente do zero torna as demais promessas secundárias e adiáveis.
O presidente tem uma chance de, se conduzir corretamente essa crise, reeditar em alguma medida tanto a frente ampla que o elegeu (no olho mecânico) quanto a união de Poderes com que respondeu ao 8 de Janeiro.
Os dois momentos pareciam, antes da enchente, fotos esmaecidas na parede, diante da rápida perda de apoio ao petista nos segmentos urbanos e de maior renda e escolaridade, a classe média, justamente quem votou nele sem convicção de esquerda, mas apenas porque não cogitava a possibilidade de reeleger Bolsonaro depois de tudo o que ele mostrou ser no curso da emergência sanitária.
É hora de dar poder e caneta àqueles que sempre bateram nas teclas de que a emergência climática era uma realidade e de que a necessidade de adequar a economia à transição verde, inclusive energética, era para já. Isso significa tratar Marina Silva como alguém que precisa de instrumentos para agir, como fez ao elaborar o arcabouço do combate ao desmatamento - nos mandatos anteriores e agora, de novo, a partir da terra arrasada da dupla Bolsonaro-Salles. A ministra também precisa mostrar capacidade de gestão para além da diretriz acertada que vem defendendo quase sozinha há mais de uma década.
O caos gaúcho reinaugura a terceira passagem de Lula pelo Planalto. Os instrumentos para atravessar essa tragédia são improvisados, desconhecidos e têm impacto incerto.
O Globo
https://oglobo.globo.com/blogs/vera-magalhaes/coluna/2024/05/lula-enfrenta-sua-propria-pandemia.ghtml