Paulo Markun é um jornalista e escritor nascido em São Paulo em 1952. Com uma longa carreira iniciada em 1971, ele atuou em diversas funções em jornais, revistas e televisão, incluindo a apresentação do programa Roda Viva na TV Cultura por dez anos. Também presidiu a Fundação Padre Anchieta e é autor de 16 livros e diretor de documentários
A busca por um jovem militante comunista que desapareceu nos porões da ditadura e a memória que não se cala.
Hoje, 29 de setembro de 2025, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, uma pergunta dolorosa voltará a ecoar: "Cadê o Magrão?". Cinquenta anos depois do desaparecimento de José Montenegro de Lima, conhecido pelo apelido que tanto o caracterizava, sua ausência permanece viva na memória de quem o conheceu.
Conheci o Magrão em julho de 1970, num bar próximo ao cursinho Equipe, no bairro de Santa Cecília. A conversa acontecia entre aquele rapaz alto, moreno, sorridente e dois jovens candidatos a universitários - eu e Vicente Dianezzi Filho. O objetivo era claro: convidar-nos para o clandestino PCB, o Partido Comunista Brasileiro.
A conversa deu certo: ingressamos no Partidão. Era assim que José Montenegro de Lima trabalhava: com naturalidade, simpatia e uma capacidade impressionante de conectar pessoas à causa da resistência.
Q José Montenegro já militava havia anos quando nos conheceu. Nascera em Itapipoca, no Ceará, em 1943, e chegara jovem a Fortaleza para estudar na Escola Técnica Federal, onde se envolveu com o movimento estudantil. Com o golpe de 1964, foi empurrado para a clandestinidade. Condenado no IPM da UNE, migrou para o Rio de Janeiro, ascendeu na hierarquia do PCB, chegou ao Comitê Central da Seção Juvenil e viajou para Budapeste e Berlim representando a Juventude Comunista. A partir de 1969, passou a viver como nômade entre cidades brasileiras, até se fixar em São Paulo. Era um militante experiente quando nos recrutou.
Daquele dia até 1975, encontrei-o algumas vezes, em reuniões do PCB e eventos sociais. Nas primeiras, atuava como articulador, construindo pontes entre as bases estudantis e a direção do Partido. Nas segundas, tentava ser discreto e aproveitar os bons momentos da vida, como qualquer jovem de nossa idade.
O Grande Cerco de 1975
O ano de 1975 marcou o ápice de uma ofensiva estatal sistemática contra o PCB, reação brutal à vitória da oposição nas eleições de 1974, que elegeu 22 deputados federais ligados ao partido. A ditadura considerava o PCB seu "inimigo número 1" e reagiu com a "Operação Radar" - campanha intensificada para "destroçar o PCB".
Como descreveu Elio Gaspari, desde janeiro de 1975 a caçada ao PCB levara aos cárceres mais de duzentas pessoas. A máquina repressiva funcionava com precisão assustadora. As revelações posteriores de Marcelo Godoy em "Os Cachorros" explicariam tal eficiência: desde 1974, Severino Theodoro de Mello, conhecido como "Melinho", trabalhava como infiltrado dos órgãos de repressão. Com o codinome "agente Vinícius", o veterano dirigente comunista passou a fornecer aos militares informações sobre cada movimento da direção partidária.
O Desaparecimento: 29 de Setembro de 1975
José Montenegro de Lima foi capturado na Bela Vista, bairro de São Paulo, em 29 de setembro de 1975. Testemunhas o viram sendo levado por quatro agentes policiais. Passou pelo DOI-CODI/SP e foi transferido para o centro de tortura clandestino da estrada de Itapevi.
Segundo Marival Chaves do Canto - ex-sargento que trabalhou como analista no DOI-CODI/SP e prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade -, Montenegro foi assassinado com uma injeção letal para cavalos, e seu corpo foi jogado no rio Tietê. Um método brutal que visava apagar completamente sua existência.
O Elo com Vladimir Herzog
Menos de um mês depois, em 25 de outubro de 1975, seria a vez de Vladimir Herzog ser assassinado nos porões do DOI-CODI/SP, sua morte forjada como suicídio numa farsa hoje totalmente desmascarada, mas que o regime tentou impor, e a imprensa em grande parte aceitou. Na época - eu era seu chefe de reportagem -, Herzog dirigia o jornalismo da TV Cultura.
Herzog era uma figura pública, e sua morte não pôde ser ocultada como a do Magrão. O rabino Henry Sobel se recusou a enterrá-lo na seção para suicidas do cemitério judaico. O Sindicato dos Jornalistas, presidido por Audálio Dantas, mobilizou seus associados. Foi Dom Paulo Evaristo Arns quem primeiro abraçou a ideia de protestar contra o crime, seguido pelo pastor Jaime Wright e pelo rabino Henry Sobel.
O movimento culminou no histórico culto ecumênico de 31 de outubro de 1975, na Catedral da Sé, reunindo oito mil pessoas na primeira grande manifestação pública de repúdio à ditadura desde 1964. Meses depois, o Sindicato encaminhou o manifesto "Em nome da verdade", subscrito por 1.004 jornalistas, contestando a versão oficial.
Uma Política de Estado
O desaparecimento de Magrão não foi acidente nem excesso de subordinados. Foi cumprimento de ordem do mais alto escalão. Documentos da CIA comprovaram que Geisel foi mais que conivente: foi mandante dos crimes. Os documentos revelaram que Geisel se reuniu com Figueiredo, então chefe do SNI, e generais do CIE para discutir critérios para assassinatos de dissidentes políticos.
Na reunião, "Miltinho" Tavares revelou que 104 pessoas haviam sido executadas pelo CIE. Geisel autorizou a continuidade, exigindo que "apenas subversivos perigosos fossem executados". Quando questionado sobre os guerrilheiros do Araguaia, admitiu: "Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser."
A Memória Que Não Se Cala
Meio século depois daquele encontro no bar de Santa Cecília, a pergunta "Cadê o Magrão?" ressoa hoje na Escola de Sociologia e Política como ato de resistência contra o esquecimento.
Vicente Dianezzi Filho dedicou anos pesquisando a trajetória do amigo desaparecido. Seu trabalho será incorporado à biografia elaborada por Marcelo Godoy, que terá pré-lançamento no evento de hoje.
José Montenegro continua desaparecido. Seu corpo nunca foi encontrado, sua família jamais pôde sepultá-lo. Mas sua história se recusa a desaparecer. A pergunta ecoa como desafio às versões oficiais, aos esforços revisionistas que buscam reabilitar os algozes, normalizando crimes contra direitos humanos e transformando carrascos como Carlos Brilhante Ustra em heróis.
Neste 29 de setembro de 2025, cinquenta anos depois, ainda procuramos o Magrão. E continuaremos procurando, porque uma democracia que não preserva sua história corre o risco de repeti-la. A memória pode ser nossa forma mais eficaz de honrar os mortos e proteger os vivos. Cada vez que perguntamos "Cadê o Magrão?", reafirmamos que a verdade não prescreve, que a justiça não foi feita.
Mas a pergunta dolorosa pode ganhar outro contorno, transformar-se numa afirmação: "O Magrão está aqui" - presente na resistência de quem não esquece, na persistência de quem não se cala, na coragem de quem continua lutando.
O rapaz que nos recrutou com um sorriso permanece entre nós, não como fantasma do passado, mas como presença que nos lembra do que perdemos e do que ainda precisamos conquistar. Magrão continua desaparecido, mas sua memória resiste, e isso já é uma vitória contra aqueles que tentaram apagá-lo da história.
Fundação Astrojildo Pereira
https://fundacaoastrojildo.org.br/politica-democratica-paulo-markun-o-magrao-esta-aqui/