Flávia Pellegrino
Responder à crise da democracia exige mais do que reformas institucionais. Exige também um pacto cultural que valorize a diversidade de vozes e experiências, incluindo a diversidade etária
A democracia brasileira, como tantas ao redor do mundo, atravessa um momento de profunda crise. Os legítimos descontentamentos diante das desiguais e incompletas entregas de suas promessas, as flagrantes anomalias do funcionamento do sistema democrático e os fenômenos que causam a corrosão do debate público e minam a convivência cidadã são fatores centrais para compreendermos como a credibilidade e legitimidade da nossa democracia passou a ser colocada em xeque ao longo da última década.
O descrédito é amplo e não se restringe a territórios, grupos sócio-econômicos ou estratos geracionais. Embora haja, evidentemente, particularidades para cada um desses e tantos outros recortes possíveis, o fato é que as insatisfações com o regime democrático refletem a desesperança da população quanto às suas perspectivas de futuro e à sua qualidade de vida.
A longevidade no Brasil torna-se, assim, um aspecto interessante e relevante a ser explorado à luz da presente crise da nossa democracia e aos possíveis caminhos para sua defesa e seu fortalecimento.
Além de um dado demográfico, a longevidade é um fenômeno político e cultural que reconfigura as relações sociais, os ciclos de vida e as formas de engajamento cívico. Nunca tantas gerações conviveram simultaneamente com expectativa de vida tão alta, compartilhando o mesmo espaço público. Esse encontro intergeracional pode tornar-se um ativo de reconstrução democrática, oferecendo novas possibilidades de diálogo, solidariedade e aprendizado mútuo em tempos de fragmentação.
O Brasil está envelhecendo rapidamente. Em 1980, a expectativa de vida era de 63,7 anos; hoje, já ultrapassa os 76 anos (IBGE, 2023). As projeções indicam que em 2070 chegaremos a quase 84 anos, com as mulheres alcançando mais de 86 anos de vida média. Nesse mesmo período, a proporção de pessoas idosas saltou de 8,7% em 2000 para mais de 15% em 2023, e continuará crescendo. Esse novo desenho populacional tem impactos diretos sobre a democracia: amplia a diversidade de demandas, redefine a agenda de políticas públicas e transforma o próprio eleitorado.
Se, por um lado, o envelhecimento pode ser instrumentalizado por discursos de medo e nostalgia, explorando inseguranças de uma parcela da população que se sente ameaçada pelas mudanças rápidas do presente, por outro, ele também pode gerar novos compromissos sociais. A longevidade, quando entendida como conquista civilizatória, amplia a experiência de vida e abre espaço para que gerações mais velhas assumam papéis de guardiãs da memória democrática, transmitindo valores e aprendizados históricos a gerações mais jovens.
Experiência e memória
A história política do Brasil mostra que os avanços democráticos foram sempre resultado de pactos intergeracionais. O processo de redemocratização nos anos 1980 contou tanto com a energia das mobilizações de juventudes quanto com a liderança de pessoas mais velhas, que trouxeram sua experiência e credibilidade à luta pela liberdade. Hoje, ao enfrentar novas formas de autoritarismo, resgatar esse espírito de cooperação entre gerações pode ser determinante para atravessar a polarização.
Esta não é, porém, uma tarefa simples. O Brasil tem hoje uma nova geração que se politizou e se envolveu de forma intensa na vida política do país a partir de junho de 2013, imersa num ambiente político marcado pela perspectiva de que o sistema democrático vigente não funciona, não entrega direitos, dignidade e prosperidade. Rejeitam, portanto, a ideia de que as falhas dessa democracia sejam aceitáveis incondicionalmente. A juventude, em grande medida, não está disposta a esperar o tempo da democracia; querem suas entregas imediatamente. Isso é simultaneamente positivo e negativo, pois, embora desejem exatamente o que a democracia promete, há também uma disposição a apostar em projetos políticos que prometem transformar o sistema atual, ainda que o caminho não seja necessariamente democrático.
A predisposição a tais projetos não é, definitivamente, exclusividade da juventude. O apelo antissistema é aderente também a gerações mais velhas. Nelas, no entanto, vivem igualmente as lembranças do regime autoritário que vigorou no Brasil entre os anos 1960 e 1980. Por mais que grupos extremistas busquem relativizar a ditadura militar, há uma prevalência do entendimento sobre os horrores e os altíssimos custos políticos, econômicos e sociais da perda da democracia. Essas gerações viveram na pele e sabem pragmaticamente o que significa viver sob um regime autoritário, trazendo ao tecido social uma memória extremamente valiosa diante da ascensão de forças políticas antidemocráticas no país.
Mais democracia, mais longevidade
Diversas pesquisas internacionais reforçam a relação entre democracia e longevidade. Um estudo com 115 países entre 1960 e 2015 mostrou que maiores níveis de democracia estão associados a ganhos de até cinco anos na expectativa de vida. Outro, cobrindo 170 países, identificou que democracias reduzem significativamente mortes por doenças cardiovasculares, tuberculose e acidentes de transporte. Em média global, democracias eleitorais apresentam expectativa de vida até 11 anos maior do que regimes autoritários.
O Brasil confirma essa trajetória. Entre 1980 e 2019, a expectativa de vida cresceu mais de 12 anos. Houve também uma queda expressiva da mortalidade infantil: de 28,1 óbitos por mil nascidos vivos em 2000 para apenas 12,4 em 2022. Esses avanços não são apenas fruto de crescimento econômico, mas também de políticas públicas viabilizadas por pressões sociais, participação cidadã e fortalecimento institucional, todas dimensões democráticas.
A pandemia de covid-19 foi uma prova dura. Em 2021, a expectativa de vida despencou para 72,8 anos, patamar de duas décadas atrás. Mas em 2023, a expectativa voltou a 76,4 anos, superando o nível pré-pandemia. Essa recuperação está ligada à resiliência institucional do SUS e às pressões da sociedade civil por vacinação, transparência e responsabilidade política - exemplos de como a democracia, mesmo sob estresse, protege vidas.
Construindo pontes intergeracionais
A convivência prolongada entre diferentes gerações oferece oportunidades inéditas de construção de pontes. Avós e netos, professores e estudantes, militantes de ontem e ativistas de hoje podem criar narrativas comuns que desarmem a lógica da guerra política altamente polarizada como a que temos hoje. Essa articulação exige intencionalidade: criar espaços de encontro, redes de diálogo e projetos coletivos que valorizem tanto a inovação quanto a memória.
O trabalho do Pacto pela Democracia parte justamente da convicção de que a democracia se fortalece quando diferentes setores, vozes e gerações se organizam, superando dissensos para defender um valor comum.
Responder à crise da democracia exige mais do que reformas institucionais. Exige também um pacto cultural que valorize a diversidade de vozes e experiências, incluindo a diversidade etária. A longevidade atravessa a crise democrática porque obriga a sociedade a lidar com múltiplas temporalidades, interesses e memórias ao mesmo tempo.
Se encarada como problema, pode aprofundar divisões. Mas, se acolhida como conquista, a longevidade pode tornar-se antídoto contra a lógica da exclusão e da intolerância. Nesse caminho, a democracia deixa de ser apenas um regime político e se reafirma como projeto coletivo de gerações que, juntas, escolhem conviver, construir e se reinventar.
Flávia Pellegrino é jornalista, cientista política e diretora-executiva do Pacto pela Democracia.
Nexo Jornal
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