Carlos Melo, professor do Insper, vê governo fortalecido e momento de 'dissimulação' no bolsonarismo, mas diz que efeitos eleitorais ainda são incertos
Por Joelmir Tavares, Valor - São Paulo
A taxação de 50% sobre produtos brasileiros, anunciada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, trouxe uma "mudança de rota" na política brasileira, com consequências tanto para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), avalia o cientista político Carlos Melo, mestre e doutor pela PUC-SP e professor do Insper.
"O governo, que até então não tinha nenhuma bandeira, agora tem a defesa dos pobres contra os ricos e a defesa da soberania nacional. Populistas ou não, são duas bandeiras que indiscutivelmente lhe dão uma posição diferente daquela de quem parecia, 15 dias antes, estar nas cordas", diz em entrevista ao Valor.
Já os bolsonaristas, na visão de Melo, "perderam a bandeira do patriotismo". Além disso, para o especialista, as instituições não vão recuar do julgamento de Bolsonaro, após Trump pregar que o ex-presidente seja julgado pelos eleitores. "O Trump não é a figura mais popular do mundo. Acho que nem todo o bolsonarismo tem essa fixação com ele."
A seguir, trechos da entrevista:
Valor: Qual é o contexto geopolítico da medida de Trump?
Carlos Melo: É preciso considerar que acaba de acontecer no Brasil a reunião do Brics, com Lula assumindo uma centralidade - diante da ausência do do Xi Jinping e do Vladimir Putin -, ao falar do crescimento do bloco e até de uma moeda própria.
Por outro lado, a carta do Trump tem um raciocínio translúcido: ela fala do Bolsonaro. Ele pode ter servido de pretexto? Pode. Agora, foi um pretexto que o bolsonarismo buscou.
O Trump talvez tenha unido o útil ao agradável, dando uma cutucada num membro do Brics e, ao mesmo tempo, um sinal para um aliado.
Que efeitos esperar?
Melo: Do ponto de vista comercial, é negociável. O Brasil não precisa ir para uma guerra. Mas, em relação ao julgamento do Bolsonaro, não há volta. O processo tem amplo direito de defesa, embora o bolsonarismo não reconheça. Se as instituições brasileiras viessem a ceder, seria o fim delas.
O Lula não tem nenhum tipo de ingerência, controle ou domínio sobre o Supremo Tribunal Federal ou a Procuradoria-Geral da República. E é bom, salutar e democrático que não tenha. Não é uma ditadura, é uma democracia com "checks and balances" [freios e contrapesos].
Como isso se desdobra na correlação de forças no Brasil?
Melo: Três semanas atrás, o governo estava nas cordas, sem discurso. Embora a economia não vá tão mal, a popularidade do presidente era declinante. O primeiro movimento que mudou isso foi o erro político do Congresso ao querer emparedar o presidente [com a derrubada do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras], levando à reação de que o Congresso faz a defesa de bilionários.
Aí vem o caso Trump-Bolsonaro e permite ao governo empunhar a bandeira da soberania, como aconteceu no Canadá e no México. Se antes o governo não tinha um discurso para as críticas na economia, agora, para tudo que der errado, vai dizer: "Foram as tarifas do Trump, trouxeram instabilidade para cá". O governo, certo ou não, vai ter a quem culpar, vai demonstrar uma correlação. É um discurso político.
Mas só o tempo dirá se o governo vai conseguir transformar esse limão numa limonada.
E quais são os impactos para o bolsonarismo?
Melo: Eles estão tentando esconder o [deputado licenciado] Eduardo Bolsonaro. Embora ele próprio se coloque como autor [da medida], se gabando da arte que fez, de uma forma pouco inteligente, na minha opinião.
Não estou dizendo, como dizem os bolsonaristas, que a culpa é toda do Lula e do Brics, mas não dá para desconsiderar isso. A política externa do governo tem uma série de problemas. O Lula disfarça, e muito mal, um certo alinhamento com a China e a Rússia, que não é nada agradável nem para os Estados Unidos nem para a União Europeia.
Em relação à China, até se poderia justificar que isso se dá em virtude de interesses econômicos do Brasil, por ser o principal parceiro econômico. Com a Rússia, o Lula tem sido pouco cuidadoso. Faz um jogo meio perigoso, estranho. Além disso, durante o processo eleitoral americano, o Lula se posicionou de uma forma pouco pouco cuidadosa, mostrando preferência pela candidatura da Kamala Harris.
É verdade que o Lula tem colecionado alguns erros, mas não me parecem erros que justifiquem a ação do bolsonarismo para defender o Jair Bolsonaro e o grupo dele de punição de crimes que estão sendo comprovados. É evidente que o bolsonarismo também é um agente nesse processo que pode prejudicar a economia e a imagem do Brasil. O momento no bolsonarismo é o da dissimulação.
Eles podem ter algum prejuízo político e eleitoral?
Melo: Há um desgaste evidente. Atingindo o Lula e o governo do Brasil, atinge a economia brasileira. Pode afetar os empregos.
O bolsonarismo não se notabiliza por uma grande sofisticação estratégica. Eles passaram a vida toda falando "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Como vão falar isso agora? Perderam a bandeira do patriotismo. Defendem não o país, mas, sim, Bolsonaro e o grupo dele da punição de crimes que estão sendo comprovados.
Pode afetar a eleição?
Melo: De acordo com o Felipe Nunes [cientista político e CEO do instituto de pesquisa Quaest] e com o que a experiência internacional tem mostrado, 10% do eleitorado é que vão decidir a eleição. Esses 10%, que não são petistas nem bolsonaristas, têm motivo agora para se agarrar ao Bolsonaro? Não.
Sobre a projeção antecipada de vitória do Lula, acho precipitação. A eleição não é amanhã, teremos novos fatos. Como vai decantar isso tudo? Houve uma mudança. Mas será permanente?
A interferência externa em assuntos brasileiros representa risco do ponto de vista democrático?
Melo: Há riscos. Um dos elementos que frustraram a tentativa de golpe foi o fato de o governo americano estar nas mãos do Joe Biden, não do Trump. Agora, depende como o Brasil vai reagir. É preciso olhar para o Supremo, as Forças Armadas. É hora de testar se as instituições estão fortalecidas e aderidas à democracia.
O sr. vê alguma parcela de responsabilidade do governo Lula no discurso, explorado pelo bolsonarismo e insinuado na carta de Trump, de conluio entre Executivo e Judiciário?
Melo: Não dá para falar que há um elo. Pode-se dizer que há algum tipo de identidade em relação à visão de mundo, com defesa da democracia, valores, etc. Entretanto, dizer que o Supremo é manipulado pelo Lula é supor um valor e uma liderança política que o presidente não tem.
Vejo o Supremo agindo de uma forma coerente. Pode até ser [um papel] excessivo, ou se dizer que o Supremo hoje tem mais poder do que deveria ter, mas isso se dá muito mais pelas deficiências e pela fragilidade da política nacional do que por qualquer outra coisa.
Valor
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