Escolhido por Lula ao Supremo, onde mexeu no vespeiro das emendas, já passou pelo Congresso e Executivo e acumula embates com o bolsonarismo
Em um dos momentos mais tensos do 8 de Janeiro de 2023, Flávio Dino segurou o general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. Dias, responsável pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, pelos braços e o sacudiu levemente.
"Precisa prender todo mundo. Ainda hoje!"Flávio Dino, no 8 de Janeiro de 2023
Era fim de tarde no gabinete do ministro da Justiça, e as principais autoridades que estavam em Brasília naquele domingo tinham se reunido para discutir a invasão dos prédios do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal. Pelas janelas ainda se via muitos manifestantes bolsonaristas perambulando pela Esplanada mas, até então, ninguém havia sido preso.
- Vocês não estão entendendo a gravidade do que está acontecendo bem na nossa frente. Estão calmos! Se não for quem está nessa sala para fazer alguma coisa, quem vai fazer? - prosseguiu, aos gritos, diante de um grupo que incluía seus colegas da Defesa, José Múcio Monteiro, e das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a governadora em exercício do Distrito Federal, Celina Leão, e seu secretário da Casa Civil, Gustavo do Vale Rocha, o recém-designado interventor na segurança do DF, Ricardo Cappelli, e outros assessores do Ministério da Justiça, então comandado por Dino.
Agitadíssimo, o ministro começou a listar o que precisaria ser feito: apreender os ônibus que tinham levado manifestantes a Brasília em grande quantidade nos dias anteriores, fechar os acessos à cidade para evitar fugas e prender os acampados em frente ao Quartel-General do Exército no Setor Militar.

Flávio Dino em sessão no Congresso, onde chegou após atuar como juiz federal; trajetória é marcada por zigue-zague entre Direito e política
Fazia alguns dias que Dino manifestava aos assessores mais próximos inquietação diante das notícias sobre uma manifestação prevista para o primeiro fim de semana depois da posse de Lula. Desde a tensa transição, Dino via paralelos entre o clima em Brasília e o que antecedeu o golpe militar que depôs o governo João Goulart em 1964. A cada incidente, como a queima de carros e ônibus nas proximidades da sede da PF na diplomação de Lula ou o achado de uma bomba nas proximidades do aeroporto às vésperas do Natal, ambos os fatos em dezembro de 2022, ele fazia correlações com os fatos que antecederam a ditadura militar no Brasil.
Os eventos da transição e o 8 de Janeiro ditaram a curta, porém marcante, passagem do maranhense, de 56 anos, pelo Ministério da Justiça. A cadeira foi conquistada graças à experiência administrativa na segurança pública como governador do Maranhão por dois mandatos e pelo passado como juiz federal e o conhecimento na área.
A coexistência nem sempre pacífica entre a formação jurídica e a vocação para a vida pública de Flávio Dino de Castro e Costa veio de berço. O pai, Sálvio Dino, era advogado, mas também foi vereador, deputado estadual cassado depois do golpe de 1964 e, posteriormente, prefeito do município de João Lisboa. O avô, Nicolau Dino, foi juiz de carreira no Maranhão.
Sua trajetória é marcada por um zigue-zague entre o Direito e a política, cujo mais recente lance foi a sua nomeação por Lula, ainda no primeiro ano do terceiro mandato, para uma das 11 cadeiras do Supremo Tribunal Federal (STF).
O convite não foi recebido com os arroubos de alegria que podem advir da chegada ao topo da carreira do Judiciário, mas como a confirmação da máxima de que uma missão de presidente da República não se recusa.
O dilema entre a política e a judicatura voltava a se apresentar, e o temor de todo o grupo político era de que fosse o final de uma carreira que tinha como horizonte nunca confessado uma candidatura à Presidência no pós-Lula.
Quando o questionam sobre se o Supremo é o fim da linha do embate interno entre o político e o profissional do Direito, Dino costuma contar que, quando estava evidente que Lula o nomearia para a Corte, se aconselhou com Nelson Jobim, também com passagens pelo ministério da Justiça e pelo STF. Não era a primeira vez que Jobim tinha sido consultado. Em 2006, o ex-ministro foi procurado para opinar sobre a hipótese de Dino deixar a magistratura para concorrer a deputado.
- Ministro, quase 20 anos atrás eu lhe perguntei se deveria largar a magistratura para ser político e o senhor me disse: "Vá, e se você se arrepender você volta!". Agora está com essa possibilidade de o presidente Lula me indicar para o Supremo. O que eu devo fazer?
"Vá. Se você se arrepender, você volta"Nelson Jobim, à queima-roupa, em resposta à pergunta de Dino
Pelo sim, pelo não, Dino hoje tem pregada, na porta do seu gabinete no STF, uma foto do ex-deputado Ulysses Guimarães do lado de fora do Congresso, feita pelo fotógrafo Orlando Britto. Assim, quando chega para trabalhar todo dia, dá de cara com São Francisco de Assis e, quando sai, se despede do Senhor Democracia.
Quem conhece o ministro há mais tempo, não acredita que este tenha sido o último movimento do vaivém.
- Flávio Dino no STF é um leão numa gaiola de passarinho - observa um dos mais antigos colaboradores, que ainda sonha vê-lo de volta aos palanques, assim como todo o time com que conviveu desde que tomou a inusitada decisão de abandonar uma carreira de juiz federal iniciada na virada para os anos 1990.
Biblioteca como refúgio e Diretas Já
Desde pequeno, quando morava com os pais na mesma casa do avô desembargador no centro de São Luís, a biblioteca foi o refúgio do menino Flávio Dino. Viu as passeatas pela redemocratização passarem embaixo de sua janela e se engajou como estudante secundarista na campanha das Diretas Já.
Na faculdade de Direito da Universidade Federal do Maranhão um paradoxo o seguiu: foi um estudante que tirava boas notas, mas frequentava pouco as aulas, porque estava engajado no movimento estudantil. No início da caminhada na política, era filiado ao PT, ao qual chegou pela ala "igrejeira" do partido, representada pelas comunidades eclesiais de base.
Na primeira vez que teve de optar entre a política e o Direito, o segundo venceu: ele não topou trancar a faculdade para se mudar para São Paulo em 1988 e integrar a direção da UNE que tinha entre os integrantes Juliano Corbelini - que viria a ser marqueteiro de suas campanhas tempos depois - e Claudio Langone, que foi número 2 de Marina Silva em sua primeira passagem pelo Ministério do Meio Ambiente.
Depois de 12 anos anos como juiz federal, passando pela presidência da Associação de Juízes Federais, a Ajufe, e integrando o Conselho Nacional de Justiça, a vontade de disputar uma eleição falou mais alto. Foi o que ele fez, se candidatando a deputado federal e vencendo com mais de 120 mil votos pelo PCdoB. Depois do mandato, viriam duas derrotas, para prefeito de São Luís, em 2008, e para governador, em 2010. Em quatro anos de política, havia disputado três eleições e perdido duas, e estava sem mandato.
Iniciava-se aí um período que amigos descrevem como uma "quadra ruim" da carreira política de Dino. Filiado a um partido pouco expressivo, sobrou para ele a presidência da Embratur no governo Dilma Rousseff, que o tirou dos holofotes que ocupara nos anos à frente da Ajufe e no combativo mandato na Câmara durante o governo Lula 2.

Flávio Dino, quando ainda era ministro da Justiça de Lula: convite para o Supremo não é visto como fim da linha do dilema entre lado político e lado jurista
A perda acentuou um traço de sua formação: a devoção ao catolicismo. Se no início a religião tinha uma interface com a política, por meio da proximidade com os expoentes da Teologia da Libertação, hoje a fé se expressa de forma mais convencional e está presente na atuação pública do ministro tanto nas citações bíblicas frequentes quanto na presença de dezenas de imagens de santos em seu gabinete no Anexo 2 do STF. Até hoje, onde quer que esteja, Dino muda o semblante quando se lembra do que chama o "evento definidor" de sua vida. Assessores e familiares evitam procurá-lo nas semanas do nascimento e da morte de Marcelo, porque sabem que são datas muito duras para ele, nas quais costuma se fechar.
Amigos dizem que a espiritualidade foi um fator decisivo para que Dino não abandonasse a política e recuperasse, depois de um luto severo, a personalidade brincalhona que até hoje é um dos seus traços.
Vitória em meio a declínio dos Sarney
Dois anos depois da perda, ele se candidataria novamente ao governo do Maranhão, desta vez numa situação de evidente declínio da oligarquia Sarney e com uma frente tão ampla que o levou a subir nos palanques de Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Campos e tirar fotos com todos eles.
A defesa feita pelo filiado ao PCdoB de uma aliança com o centro e a centro-direita não era uma posição nova, e seria uma tônica de seus dois mandatos e uma ideia que ele ajudaria a levar à campanha de Lula em 2022 contra Jair Bolsonaro.
Estudioso da História do Brasil, Flávio Dino costuma destacar o papel de José do Patrocínio, e vê na campanha pela abolição da escravidão, que teve como marco a aliança entre Patrocínio e um expoente do Império, Joaquim Nabuco, a primeira expressão do conceito de frente ampla no Brasil.
Mesmo com um leque abrangente de alianças, seu primeiro mandato no Palácio dos Leões foi um período marcado por grandes turbulências e reflexos da crise econômica e política que levou à Lava-Jato e ao impeachment de Dilma. Quando rememora aquele primeiro mandato, costuma lamentar que, se a conjuntura tivesse sido mais favorável, os resultados teriam sido ainda melhores. As principais marcas foram a construção de uma rede de saúde pública até então praticamente inexistente no interior do Estado e a pacificação do presídio de Pedrinhas, que foi palco de uma sangrenta rebelião em 2013 e, desde então, fora transformado em símbolo da falência do sistema prisional brasileiro.
O resultado veio nas urnas, com uma reeleição em primeiro turno com quase 60% dos votos mesmo enfrentando a ex-senadora e ex-governadora Roseana Sarney, com uma chapa que reuniu nada menos que 16 partidos, do PCdoB ao DEM, passando pelo PT.

"Flávio Dino no STF é um leão numa gaiola de passarinho"Aliado do magistrado, ao comentar possível retorno à política
Começava ali um novo desafio: como governar tendo Jair Bolsonaro como presidente? Os dois tinham sido colegas nada amistosos na Câmara, e o novo presidente tinha no maranhense um dos alvos preferenciais na esquerda, pela sua associação histórica ao lulopetismo e pelo perfil aguerrido com que o maranhense sempre fez política. Em resumo: brigar com Dino rendia, já naquela época.
Em 2014, Bolsonaro deu uma declaração segundo a qual a única coisa positiva que havia no Maranhão era Pedrinhas, numa defesa escancarada da mortandade no presídio.
O confronto entre ambos atingiria seu ápice na pandemia de Covid-19. Logo na virada de 2019 para 2020, Dino começou a martelar na cabeça dos secretários o diagnóstico de que o novo coronavírus descoberto na China chegaria ao Brasil em fevereiro e, se nada fosse feito, causaria muitas mortes.
No começo de fevereiro, chamou o secretário da Casa Civil, Diego Galdino, e ordenou: "Preciso de um hospital novo pronto em um mês".
- Mas gov - respondeu o jovem de 29 anos, usando o apelido pelo qual vários auxiliares chamavam Dino -, como vou entregar um hospital novo em menos de 30 dias?
- Ou tu me entrega ou o Maranhão vai ter um colapso de leitos. E depois vamos precisar de outros, porque este vai estar cheio em poucos dias - respondeu Dino.
Galdino e os demais secretários duvidavam das previsões para lá de pessimistas feitas pelo chefe, que se tornou obsessivo pelo tema. "Ele era o maior especialista em Covid do mundo. Entreguei o hospital para ele no dia pedido e, 12 dias depois de inaugurado, no começo de abril, o hospital estava cheio. Parecia que ele tinha vindo do futuro", lembra o ex-auxiliar, passados cinco anos.
O Maranhão teve uma das melhores respostas nacionais na pandemia. O estado mais pobre da federação registrou a menor taxa de mortos do país, de 105 por 100 mil habitantes, semelhante à Alemanha. Foi a primeira unidade da federação a decretar um lockdown parcial e, todos os dias, Dino comandava uma entrevista coletiva em que incentivava a população a ficar em casa.
Aos auxiliares, Dino repetia que não admitiria ver em seu Estado imagens de pessoas morrendo por falta de ar, um gatilho evidente com a situação que vitimara o filho sete anos antes.
Protagonismo após 8/01 e aproximação com Moraes
Além de dar o tom do que seria sua passagem pelo ministério, o 8 de Janeiro também foi importante para o nascimento de uma aproximação de Dino com o ministro Alexandre de Moraes, movimento que seria crucial para a indicação ao STF.
Os dois concordaram quanto à necessidade de uma resposta imediata e sem tergiversações à depredação dos prédios federais. Pelo telefone, combinaram os passos seguintes para responder ao cerco que o comando do Exército fechou naquela noite para impedir as prisões imediatas dos acampados em frente ao Forte Apache.
O protagonismo do ministro da Justiça naquele dia se prolongou nos dois primeiros anos do terceiro mandato de Lula, e Dino assumiu a vanguarda da disputa verbal com os bolsonaristas. Uma marca do período foram as seguidas convocações para que depusesse em diferentes comissões da Câmara e do Senado. A primeira aconteceu em março de 2023, na CCJ da Câmara.
Com a sua conhecida tendência à ironia e respondendo na mesma moeda, Dino foi parar nos telejornais da noite superando alguns dos mais estridentes expoentes da direita bolsonarista nos embates ao vivo.
"Foi muito divertido"Flávio Dino, em resposta a aliados a cada convocação ao Congresso
Dali em diante o filme se repetiria em várias ocasiões.
Como não se ocupa tanto espaço sem incomodar, Dino passou a ser alvo de fogo amigo, sobretudo do PT, descontente com suas diretrizes para a segurança pública e preocupado em não deixar que fosse ele o escolhido por Lula para a segunda vaga no STF, a da então ministra Rosa Weber.
Os meses que antecederam a escolha foram marcados por toda sorte de balões de ensaio contra o ministro, que aliados seus atribuem a inimigos internos, mais do que à oposição. Nada disso fez Lula ser dissuadido de uma decisão que interlocutores dizem que sempre esteve tomada, mas que só começou a ser objeto de conversas no início de novembro.
Numa dessas sondagens, Dino chegou a dizer ao presidente que gostava muito de ser político, que já tinha realizado o sonho de governar seu Estado com José Sarney vivo e que, se o presidente precisasse do ministério para dar ao PT, iria exercer seu mandato de senador com prazer. No fim de semana anterior a 27 de novembro de 2023, Dino estava no Maranhão quando o presidente lhe pediu que voltasse. E avisou que na segunda-feira o indicaria para o STF, e Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República. Em 13 de dezembro, com 47 votos e 31 contrários, Dino foi aprovado pelo plenário do Senado para ser ministro do STF.

Os primeiros meses na Corte foram marcados por certo silêncio. Era preciso estudar o terreno e aprender os códigos da nova casa. Também aproveitou para preparar o segundo casamento, marcado para o fim de 2024, e se dedicar a um regime que o fez perder 26 quilos - depois de sucessivos alertas médicos de que, ou emagrecia, ou corria risco de vida.
Foi em agosto que veio a bomba: o recém-chegado ministro mandou suspender, por liminar, o pagamento de todas as emendas impositivas de deputados e senadores até que fossem editadas novas regras de transparência e rastreabilidade, por entender que havia um descumprimento ao acórdão de 2023.
O mundo caiu. Os então presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), protestaram contra a interferência do Judiciário no Legislativo. Nos bastidores, a cúpula do Congresso via o dedo de Lula para, por meio do ministro por ele designado, reverter o avanço do Parlamento nas decisões orçamentárias que não tinha força para mudar por não ter maioria congressual.
O caso voltara ao gabinete de Dino como uma herança do acervo de Rosa Weber, relatora original das ações de inconstitucionalidade do chamado orçamento secreto. O ministro tentou pegar leve. Marcou uma primeira audiência no começo de agosto para buscar um acordo, descrita como um desastre. A assessores, se queixou que os parlamentares pareciam achar que ele era idiota, dadas as explicações que apresentavam.

Flávio Dino, ainda antes da nomeação para o Supremo: primeiros meses na Corte foram de silêncio, que precedeu decisão de suspender de emendas
A trégua com os políticos estava oficialmente encerrada, e o capítulo seguinte não foi menos belicoso: integrante da Primeira Turma da Corte, foi alvo de tentativas por parte de vários advogados do chamado núcleo crucial da denúncia por tentativa de golpe de estado do governo Bolsonaro que arguiram sua suspeição para julgar o ex-presidente e seus aliados, dado o histórico de animosidade política entre ambos e o fato de que Dino era ministro da Justiça no 8 de Janeiro.
Superadas todas as tentativas de escanteá-lo, ele teve papel discreto e adotou um tom inesperadamente comedido nas sessões de julgamento que acabaram por tornar Bolsonaro réu no mês passado. Dino costuma repetir ao seu grupo que é preciso escolher as brigas, que há muitos embates pela frente e que a democracia não é um bem assegurado ainda.
O Globo
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