Protagonista da série "O Eternauta", que chega dia 30 ao streaming, ator argentino fala sobre o Oscar para "Ainda estou aqui" e de sua ausência nas redes sociais: "elas governam nossa vida"
Por Mariana Rosário - São Paulo
O ator argentino Ricardo Darín, de 68 anos, gosta de mandar recados. Ainda no começo desta entrevista deu uma pausa na conversa para desejar aos brasileiros os parabéns pela premiação do Oscar de melhor filme estrangeiro para "Ainda estou aqui", dirigido por Walter Salles. Antes de desligar a videochamada, que fez de Buenos Aires e para a qual chegou antecipadamente, ainda lembrou de um segurança que o acompanhou numa viagem para São Paulo e de quem ficou "muito amigo". Disse que sabia que ele leria a entrevista e, portanto, deixou um abraço. E ainda arrematou: "você é paulista?"
A figura sorridente e simpática em nada se parece com o duro personagem Juan Salvo, protagonista que Darín viverá na série "O Eternauta", que será lançada na Netflix no próximo dia 30. Nela, uma ameaça mortal em formato de neve tóxica cobre Buenos Aires e obriga os poucos sobreviventes, como Juan, a se organizarem em grupos que precisam lidar com toda sorte de inimigo externo que aparece, inclusive outros humanos. A história foi adaptada dos célebres quadrinhos homônimos de Héctor Germán Oesterheld (1919-1977) e Francisco Solano López (1928-2011) lançados pela primeira vez entre 1957 e 1959, na Argentina. A história tem forte correspondência com a política do país, sobretudo porque Oesterheld é um desaparecido político dos anos de ditadura militar. Darín, porém, acredita que a história de pânico e temor contada no enredo rompe fronteiras e pode encontrar identificação em diversas partes do mundo.
- Acho que todos nós estamos passando por uma crise de confiança - pondera o ator, que fala também sobre sua ausência nas redes sociais, o futuro do Brasil pós-Oscar e a vontade de ver mais produtos de ficção na TV aberta.

Ricardo Darín na pele de Juan Salvo, na série 'O eternauta': personagem foi criado por Héctor G. Oesterheld, desaparecido durante a ditadura militar argentina - Foto: Divulgação
Pela seriedade dos integrantes, da produção, de Bruno Stagnaro (o diretor) e dos produtores. Dava para perceber que havia uma intenção muito séria, que seria um projeto grande. Outra coisa que me deu ânimo foi perceber que o conteúdo da história tem uma atualidade impressionante. Dá para relacionar o que acontece com esses personagens com o que deve estar acontecendo com muitas pessoas ao redor do mundo, por diferentes motivos. Essa sensação horrível de sentir uma ameaça externa sem entender exatamente do que se trata. Algo que gera pânico, muito medo. E, quando isso acontece com a gente, a primeira reação é ficar meio paralisado, esmagado, congelado. Acho que isso tem muita representatividade hoje em dia.
Parece muito com a Covid também, ou com um cenário de guerra, ou de recessão política. Tudo isso pode ser relacionado, não é?
Muitas vezes, ao longo das filmagens, esse paralelo nos chamava a atenção com relação ao que sentimos ao viver em um mundo em que havia a emergência da Covid. Essa coisa de ter uma pandemia, de estar isolados em casa sem poder sair, sem acesso às coisas de que precisávamos. Aproveitando que estamos falando, queria te parabenizar e a todos os brasileiros pelo Oscar por um filme tão maravilhoso como "Ainda estou aqui".
Você gostou do filme?
Não só gostei como fiquei muito feliz. Primeiro por Walter Salles, de quem gosto demais e a quem admiro muito. Tive a sorte de conhecê-lo pessoalmente. Ele já me convidou duas vezes para participar de um projeto, e eu não consegui - coisa que lamento muito. Tomara que um dia a gente consiga. Também gosto muito de Fernanda Torres, que é uma atriz incrível, algo que vem de berço, afinal é filha de Fernanda Montenegro, que também está no filme. Fiquei muito feliz mesmo que tenham sido reconhecidos e que tenham ganhado o Oscar - algo que não aconteceu conosco com "Argentina, 1985".
Acha que o Oscar pode ter impacto positivo para todo o cinema brasileiro?
Acho que é exatamente o que o cinema brasileiro precisava. Não só para recuperar a memória do que foi feito no período ditatorial no país, mas também para resolver um sentimento que eu percebi, principalmente entre os mais jovens, de uma certa crítica ao cinema brasileiro, como se tivessem se esquecido dos grandes filmes que o Brasil produziu ao longo de décadas. Antes, nós argentinos consumíamos muito cinema brasileiro, muito mesmo. Depois, por questões de distribuição, esses filmes pararam de chegar. Por outro lado, sei que o Brasil consome muito cinema argentino. Quando houve a ruptura dessa ponte (de distribuição de filmes brasileiros) quem mais saiu perdendo fomos nós, porque perdemos a chance de ver filmes maravilhosos. Por isso, o que aconteceu com o Walter Salles e o filme dele me deixa muito feliz. Muito feliz mesmo.

Ricardo Darín em cena de 'Argentina, 1985' - Foto: Divulgação
Você parece ter especial atração por filmes que retratam regimes ditatoriais. "Argentina, 1985", em que você é um dos atores, também tem essa temática. No caso de 'O Eternauta', um dos autores é um desaparecido político...
A primeira coisa que faz uma história ser atraente é que ela seja bem feita, bem contada. Estamos falando de dois filmes que são assim. Porque especialmente depois do que a gente viveu na América do Sul com as ditaduras, ocorreu que todo mundo sentiu a necessidade de falar sobre o que tinha acontecido. "Ainda estou aqui" e "Argentina, 1985" são dois filmes que têm foco na parte humana, no seio familiar. Nos faz pensar: o que aconteceu com essas pessoas? Acho que esse é um ângulo diferente de olhar para as coisas. Gera um outro foco, uma nova perspectiva. E isso é o que faz com que a gente tenha acesso a esse tipo de episódio de outra maneira. Quando a gente conta, com qualidade, o sofrimento e a dor das pessoas, focando especificamente no que aconteceu com cada uma delas, a chance de que isso seja compreendido, acolhido e sentido em qualquer parte do mundo é muito maior. As pessoas conseguem se colocar no lugar dos protagonistas. É isso que acontece com "Ainda estou aqui".
Você não está nas redes sociais. Como se comunica com os mais jovens?
As redes sociais começaram a governar nossas vidas. O que elas têm é um imediatismo que outros meios não oferecem. Lembro que, quando começaram a surgir, vi um amigo criando uma conta. Perguntei por que ele estava fazendo aquilo. E ele me respondeu: é a única chance que eu tenho de me defender das mentiras de certos meios. Então ele criou uma dessas contas e passou a ter a chance de dizer o que pensava. É isso que as redes oferecem. Claro que também existem os haters. Gente que fica atrás das telas tentando odiar tudo que aparece no mundo, muitas vezes sem nem saber direito do que está falando. Mas acredito que isso faz parte de uma nova era. E é preciso pensar muito bem antes de postar alguma coisa, antes de responder. É importante lembrar que tudo ali é muito imediato. A repercussão vem na hora.
Há um cenário de crise de confiança também.
Todos nós estamos passando por uma crise de confiança. Todos os dias recebemos informações, dados, vídeos de situações em que pessoas de boa-fé, que confiam nos outros, acabam sendo traídas, enganadas. Vivemos situações de insegurança que, em muitos casos, têm a ver com a confiança, com o fato de que pessoas do bem não estão pensando no mal. E esse talvez seja um dos maiores problemas da humanidade hoje.
Qual é o seu palpite sobre a recepção dos argentinos para receber a história de 'O Eternauta'? É um enredo bem conhecido ai.
Não tenho a menor ideia. Minha maior pretensão é que, tomara, tenhamos a sorte de chegar aos jovens, que estão muito dedicados aos videogames. É um território que precisamos recuperar. Porque o espectador experiente, o espectador adulto que já tem um certo olhar treinado, eu sei que estará com a gente. O público jovem é um território que precisamos reconquistar.
Sua carreira começa com seriados para a TV aberta. Você tem vontade de voltar a fazer esse tipo de produto?
Aconteceu uma mudança muito grande nos espectadores. A televisão aberta está tendo cada vez menos produções de ficção. O que mais se vê são programas de entretenimento, telejornais, programas de jogos, de competições e afins. A ficção tende a desaparecer da TV aberta, o que é lamentável. E agora temos a possibilidade de entrar nas casas com uma história importante, envolvente, por meio das plataformas, que de certa forma captaram essa necessidade e preencheram essa ausência de histórias importantes na TV aberta. É isso que está acontecendo. Essa é a nova dinâmica, essa é a nova era, e a gente precisa se adaptar. Quando recebi o convite pensei: bem, é a oportunidade de voltar à TV com outro ângulo.
A essa altura da carreira, como escolhe um personagem?
Achei os personagens da série muito interessantes e considero que eles provavelmente vão gerar empatia no público, porque, no fim das contas, são pessoas comuns, gente normal, como a gente costuma dizer. É uma forma de mostrar o que poderia acontecer com qualquer um de nós numa situação parecida. Eles não são super-heróis, não são figuras extraordinárias. São pessoas com seus próprios problemas, seus conflitos, colocadas numa situação que não é só extrema, mas também totalmente inesperada. A gente nunca está realmente preparado para esse tipo de coisa.
O que quer levar às pessoas agora?
Acho que muitos momentos dessa história empurram a gente a pensar. O que eu faria numa situação como essa? Se a minha família estivesse sendo atacada, se estivesse em perigo, o que eu faria? Eu teria coragem? Ficaria paralisado? Ou agiria pensando no que seria mais adequado? Me parece que a série convida a esse tipo de reflexão.
E o que você faria numa situação assim?
Daria minha vida para defender as pessoas que eu amo. Tenho certeza disso.
O Globo
https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/04/18/ricardo-darin-a-crise-de-confianca-e-um-dos-maiores-problemas-da-humanidade-hoje.ghtml