Como escreveu o poeta Pablo Milanés: "E quem garante que a História / É carroça abandonada / Numa beira de estrada / Ou numa estação inglória / A História é um carro alegre / Cheio de um povo contente / Que atropela indiferente / Todo aquele que a negue". Essa reflexão poética nos lembra que a marcha da história segue suas próprias regras, em constante movimento, impulsionada por forças ideológicas e sociais. Em cada tempo, a história percorre um caminho único, e cada fato traz consigo uma nova narrativa.
Entre a história contada e a história vivida, surge uma tensão: quanto mais racionalidade e rigor técnico na construção da narrativa, mais fidedigna ela se torna. No entanto, é crucial reconhecer que a sequência de eventos que forma a história é, em grande parte, o resultado das disputas ideológicas que permeiam qualquer sociedade politicamente organizada. Mesmo com a compreensão de que a história pode ser alvo de revisões e disputas narrativas, ela segue o seu curso, e a humanidade, entre avanços e retrocessos, também prossegue.
Diante dos avanços da direita e de suas bandeiras que muitas vezes desafiam as conquistas civilizatórias alcançadas desde o Iluminismo - passando pela Revolução Francesa, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pelo constitucionalismo e pelos direitos fundamentais -, muitos no campo progressista encontram-se desanimados. Este desânimo se dá frente a ascensão de uma ideologia que prega o individualismo competitivo, a meritocracia e, por consequência, a seleção natural dos "melhores", ou dos "mais espertos", e por inferência pode parecer um irreversível retrocesso. Mas eu não compartilho dessa desesperança.
A história é feita de ciclos, e não há mal que dure para sempre. Durante os primórdios da exploração capitalista, surgiram forças contrárias que representavam a expressão do antissistema, como por exemplo os sociais-democratas, que buscavam reformar o sistema capitalista e torná-lo mais humano, e em paralelo caminhavam os comunistas, que desejavam substituir o capitalismo por um modelo em que os meios de produção fossem socializados e as riquezas distribuídas conforme a máxima marxista: "De cada um, segundo sua capacidade; a cada um, segundo suas necessidades".
Com a derrocada do socialismo real - simbolizada pela queda do Muro de Berlim e o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) -, o capitalismo perdeu seu contraponto mais visível. As forças conservadoras e neoliberais sentiram-se à vontade para propagar uma nova roupagem ideológica que exalta o individualismo, a competição e o empreendedorismo como soluções únicas para a prosperidade pessoal. Contudo, essa visão ignora a pluralidade de propósitos e realizações humanas.
A ideia de que todos os indivíduos devem buscar o empreendedorismo para prosperar é uma falácia. A diversidade humana é uma das maiores riquezas da sociedade: há aqueles que encontram realização nas artes, outros na religião, na medicina, na engenharias, empresários, ou empreendedores. Para que uma sociedade seja verdadeiramente harmoniosa, é necessário que todos os talentos e desejos contribuam para uma convivência solidária, e não para uma competição desenfreada que favorece poucos em detrimento de muitos.
O modelo de desenvolvimento econômico centrado no individualismo competitivo e na liberdade entendida como sinônimo de livre iniciativa, defendido pelo neoliberalismo, tem gerado crescente desconforto devido às suas consequências sociais e ambientais. Essa abordagem prioriza o mercado como regulador absoluto da vida social, negligenciando os impactos sobre a coletividade e reforçando desigualdades estruturais. Além disso, quando associado a tendências autoritárias, esse neoliberalismo de ultradireita adquire características fascistas, concentrando poder e recursos nas mãos de poucos, utilizando a mentira e a violência como métodos de disputa de poder e enfraquecendo instituições democráticas e direitos fundamentais. O resultado é uma sociedade marcada pela fragmentação, instabilidade e exclusão.
Diante disso, propõe-se uma alternativa: um mercado regulado pelos interesses da coletividade e uma liberdade pautada em princípios éticos, como o imperativo categórico de Kant. Esse conceito de liberdade reconhece que os direitos individuais devem coexistir com o bem-estar coletivo, limitando ações que prejudiquem o próximo ou ameacem a harmonia social. Trata-se de buscar um equilíbrio entre eficiência econômica e justiça social, construindo um modelo de desenvolvimento que respeite a dignidade humana e promova a sustentabilidade, enquanto preserva os valores democráticos.
Quando se deixa a organização social nas mãos do mercado, como pregam os neoliberais, cria-se um ambiente de desordem. A lógica do mercado é, por natureza, a do lucro a qualquer custo e da competição constante. Essas forças, em grande parte contraditórias, precisam ser reguladas pelo Estado para garantir uma organização social mais justa.
O papel do Estado não é de mero expectador, mas de agente que se submete ao controle e valoriza os freios e contrapesos para se auto regular, impedindo qualquer tipo de autocracia e assegurando que o desenvolvimento integral das pessoas seja seu principal objetivo. Um Estado que assegure que a produção de riquezas esteja a serviço de todos, e não de uma elite privilegiada.
Essa ideia encontra respaldo em pensadores liberais e socialistas clássicos como John Stuart Mill, que, em "Princípios de Economia Política", defendeu a importância de limitar a concentração de riqueza e poder, e em Karl Polanyi, em "A Grande Transformação", e Karl Marx na obra "O Capital".
John Stuart Mill, Karl Polanyi e Karl Marx compartilham a crítica às desigualdades inerentes ao capitalismo, ainda que com abordagens distintas. Mill defende a possibilidade de redistribuição de riquezas por meio de reformas no sistema, buscando maior justiça social sem abandonar o mercado. Polanyi, por sua vez, aponta os efeitos desastrosos da mercantilização da vida humana, propondo a proteção das sociedades contra as forças desreguladas do mercado. Marx, enxerga a distribuição desigual de riquezas como uma consequência estrutural do capitalismo, defendendo sua superação em favor de uma sociedade comunista. Em comum, os três reconhecem a necessidade de limitar ou transformar o papel do mercado para lidar com as disparidades econômicas.
Portanto, é preciso retomar as conquistas da razão, da solidariedade e da justiça social. E, mesmo diante das dificuldades impostas por ciclos de retrocessos, acreditar que a história é um carro alegre - que, inevitavelmente, continuará seu caminho em direção ao progresso coletivo.
JOÃO ANTONIO DA SILVA FILHO é mestre em filosofia do direito e doutor em direito público, conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e vice presidente da ATRICON - Associação dos Membros dos Tribunais do Brasil.
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