Pesquisas de Marisol Recamán serviram de bússola para Nunes avançar sobre redutos do campo progressista e conquistar diferença de quase 20 pontos percentuais sobre Boulos no 2º turno
Por Cristiane Agostine - De São Paulo
Com um histórico de atuação em campanhas petistas e ex-integrante do núcleo de opinião pública da Fundação Perseu Abramo, do PT, a socióloga Marisol Recamán tornou-se uma espécie de oráculo da campanha do prefeito reeleito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), na busca pelo eleitorado da periferia. As pesquisas qualitativas e quantitativas comandadas por Marisol ajudaram a apontar o caminho para Nunes avançar sobre redutos do campo progressista e conquistar uma diferença de quase 20 pontos percentuais nas urnas em relação ao deputado federal e candidato derrotado Guilherme Boulos (Psol) no segundo turno. O prefeito ganhou em 54 das 57 zonas eleitorais, até mesmo no Campo Limpo, bairro do extremo sul onde Boulos mora.
Uma das principais orientações dadas por Marisol, baseada nos dados de pesquisas, foi a de não apostar na nacionalização da disputa, deixando de lado a polarização entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apoiador de Boulos, e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), aliado de Nunes. Toda vez que o prefeito caiu no "canto da sereia" e abraçou o bolsonarismo, perdeu apoio. Foi isso o que indicaram os levantamentos da campanha quando Nunes criticou a obrigatoriedade da vacina ou quando foi ao ato do 7 de setembro na avenida Paulista contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo.
A preocupação do eleitor na disputa municipal, diz, é com quem poderá melhorar sua vida no curto prazo. Marisol avalia que foi a eleição do "fez, faz e fará". Ainda que o prefeito tenha deixado a desejar em áreas sensíveis, como a saúde, a indicação do que poderá fazer pesou em uma eleição muito disputada.
A socióloga elogia as propostas de Boulos como "excelentes", mas diz que foram pouco exploradas, sobretudo na reta final da disputa. Sem a máquina pública nas mãos e com a aposta em um discurso agressivo no segundo turno, o candidato do Psol ficou restrito aos "lulistas" e não conseguiu ampliar seu eleitorado para conquistar o voto antibolsonarista da cidade. O entrave, avalia, não se deu pela baixa participação de Lula no palanque de Boulos nem pelo empenho da vice, a ex-prefeita Marta Suplicy (PT). O problema foi a própria campanha do candidato do Psol.
Diretora da OMA Pesquisa, Marisol dedica-se aos estudos do processo político de formação da opinião pública. Na Fundação Perseu Abramo, do PT, foi coordenadora-assistente do núcleo de opinião pública e prestou consultoria. A lista de campanhas em que já atuou é grande. Entre elas, estão as presidenciais de Lula em 2002 e 2006 e de Dilma Rousseff em 2010 e 2014 - todas vitoriosas. Em 2022, trabalhou na estruturação da campanha de Simone Tebet (MDB). Na disputa pela Prefeitura de São Paulo, esteve também nas campanhas de Marta Suplicy (PT) em 2000, Fernando Haddad (PT) em 2012 e de Bruno Covas (PSDB) em 2020 - todas também vitoriosas. Participou ainda das campanhas de Gilberto Kassab (PSD) ao Senado e de Márcio França (PSB) à reeleição no governo de São Paulo, além de campanhas na América Latina. Marisol faz pesquisas e análises também para o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB).
A seguir, trechos da entrevista ao Valor.
Valor: Que balanço a senhora faz desta eleição em São Paulo?
Marisol Recamán: Não foi uma eleição fácil. Tinha uma conjuntura de camadas de disputa política. O atual prefeito era um vice, desconhecido, mas tinha entrega. A personalidade dele não estava totalmente construída, não tinha uma imagem estruturada. Além disso, tinha uma camada da polarização. Quando Marçal se colocou firmemente [como candidato], essa polarização ficou entre Boulos e Marçal. Isso criou ou uma fenda ou uma estrada para Nunes. Na polarização, Nunes não ganha nada, só perde. Claro que esse tipo de política atrai para os extremos porque foi muito importante para o Brasil, mas na cidade não era isso que se mostrava nos grupos de quali [pesquisa qualitativa]. Apesar de São Paulo ter uma conversa muito nacionalizada, a disputa pela prefeitura é sobre a minha rua, a UBS, a escola, limpeza de rua, se a rua está asfaltada ou não. É a vida como ela é, onde ela se dá. É por aí que temos que caminhar. Nunes só tinha a força da gestão e a imagem dele foi construída junto com isso. [Era preciso] Não cair na fenda da polarização, evitar o canto da sereia da polarização e construir a estrada de gestão, de entregas. Toda vez que o canto da sereia foi mais forte, a candidatura teve dificuldades. Sempre que aparecia um pouco da polarização, dava problema na candidatura dele. E quando se coloca na polarização, se distancia das periferias, do eleitor que está chegando e está com você, mas que não gosta do Bolsonaro.
Valor: Nunes perdeu espaço para Marçal, que atraiu bolsonaristas, e quase ficou fora da disputa. Poderia citar um exemplo dessa armadilha política com Bolsonaro?
Marisol: Bolsonaro simplesmente abandonou [Nunes] e foi um momento muito difícil. Mas não achava que isso seria muito drástico se a candidatura soubesse qual caminho seguir. Bolsonaro ajudava muito em São Paulo? Não. A cidade é majoritariamente não Bolsonaro. Então era preciso caminhar para o que a cidade está pedindo, que é um bom governo. Tarcísio ajudou muito, sim, com apoio político e moral. E Tarcísio entendeu que era a gestão que precisava ser fortalecida. Foi isso que foi construído. O 7 de setembro foi um problema. Sempre que aparecia um pouco da polarização, dava problema na candidatura dele, porque não dialoga com aqueles que estavam sendo conquistados pelo governo. E quando se coloca na polarização, se distancia das periferias, do eleitor que está chegando e que está com você, mas que não gosta do Bolsonaro. Defendi essa perspectiva o tempo todo. A campanha seguiu o caminho da gestão. Foi a campanha do 'fez, faz e fará' e com perfil muito periférico. Não porque Nunes nasceu na periferia, mas porque ele faz para a periferia. Era o grande valor dele.
Valor: E por que Boulos perdeu tanto espaço na periferia?
Marisol: No segundo turno, Boulos se distanciou da disputa do que fazer para melhorar a minha vida, o meu cotidiano. Ele tinha propostas, mas se distanciou disso, foi para o embate nacional e aí Nunes correu sozinho a disputa de propostas, de como é que minha vida vai ficar. É isso que conquistou a periferia. Boulos ficou agressivo demais. Havia dois personagens que não são líderes políticos constituídos. Os dois estavam sendo construídos. Boulos já tinha um pouco mais, mas tinha uma rejeição que precisava trabalhar.
Valor: Saúde é um dos principais problemas da cidade. Há filas com milhares de pessoas aguardando exames, consultas, falta remédio no posto, falta médico. No transporte, faltam corredores de ônibus, os ônibus estão mais cheios, o trânsito piorou. A gestão enfrentou muitos problemas e isso pesa para quem mora na periferia. Isso não pegou?
Marisol: Pegou. Saúde é um problema e o atendimento é ruim, na perspectiva da população. Qual é a diferença que por vezes se percebia [nas pesquisas]? 'Ah, é ruim, mas ele fez uma UPA nova'. 'É ruim, mas está fazendo outra UPA'. Detalhes que dão a ideia do 'fez, faz e fará'. Está boa a saúde? Não. Ele apresenta um caminho que parece que vai melhorar, com o que ele já está fazendo? Sim. É frágil? É frágil, a saúde é ruim. Mas a ideia era a de que ele fez, está no caminho e fará porque está comprometido com a periferia. As obras na periferia comprovaram isso. Mas só a continuidade não amarrava o voto, porque para ser continuidade, falta muita coisa. É o futuro, é ele mostrar que vai inovar. Nessa batida que ele faz, era pouco, insuficiente. Então a ideia de que fará novas coisas. Isso, em contraponto à candidatura mais polarizada de Boulos, ajudou a fortalecer no segundo turno esse perfil.
Valor: O tom mais agressivo adotado por Boulos no 2º turno afastou o eleitorado?
Marisol: Não ajudou o Boulos, não, porque tem um cansaço da brutalidade. Quando você está na expectativa de ouvir proposta e ouve agressividade, você fecha os ouvidos. Tem que estar numa disputa muito polarizada para isso dar certo. Boulos deixou de ganhar. Não é que deu a vitória para Nunes, mas deixou de disputar esse campo de que 'estou fazendo, tenho compromisso'. Mas foi uma eleição difícil. Era todo dia um freio de arrumação.
A esquerda está em um momento que vai ter que reconstruir tudo isso. E o PT não é diferente"
Valor: No 1º turno muito se falou do discurso antissistema do Marçal, voltado para o empreendedorismo, com a teologia da prosperidade. O que influenciou Marçal ter o desempenho que teve? E como Nunes atraiu eleitores dele na periferia?
Marisol: Esses eleitores - e esse é um recorte mundial, não é fenômeno do Marçal - têm uma nova expressão política que é a ideia do antissistema, à direita, e que leva uma ideia de 'eu posso por mim mesmo'. A política como está colocada já não resolve mais o meu problema, não me entrega o futuro. E tem também um problema de representação. Não estamos elegendo representantes efetivos, já não tem mais o compromisso do eleitor com o seu candidato. Tem uma crise da representatividade e isso abre um espaço imenso para a ideia de que o sistema não serve mais. Tem um pedaço importante da sociedade que está envolvido nos temas conservadores e, ao mesmo tempo, é individualmente libertário. Só que ficam todos em um campo muito da extrema direita. Marçal representou bem isso e tem uma linguagem para expressar isso. Enquanto o outro campo se expressa da forma tradicional da política, ele tem uma nova linguagem. Essa linguagem é o que vai ser não só na política, mas em todo campo da vida social. Tanto é que Bolsonaro perde muita força quando não fica com ele.
Valor: De que forma isso se deu?
Marisol: Bolsonaro já não tinha muita força em São Paulo. A que tinha, foi absorvida. Em um dos grupos [de pesquisa qualitativa] falavam: 'Ele [Marçal] é o cara que defende o que eu acredito. Bolsonaro deveria estar com ele. Se não está é porque não defende aquilo que acredito'. Toda concepção de direita foi levada pelo Marçal.
Valor: O discurso do empreendedorismo, liderado por Marçal, foi bem trabalhado no 2º turno?
Marisol: Empreendedorismo é a ideia de fazer por mim mesma. 'Não quero carteira de trabalho, quero crescer sozinho, não me atrapalha. Se puder me ajudar, ótimo, mas não me atrapalha'. É a ideia do autônomo. As leis trabalhistas já se colocam de outra forma, não é mais uma preocupação ter carteira assinada. É a ideia de que posso ganhar por mim mesmo, pelo meu esforço e talento. Boulos apresentou propostas de empreendedorismo e isso é muito diferente de todo o marco ideológico dele. Mas ele foi para esse campo senão não dialoga mais com os mais jovens, de 16 a 35 anos. A candidatura que não entender essa nova forma de se relacionar e trabalhar, ficará para trás.
Valor: O que ajuda a explicar a alta rejeição de Boulos, até mesmo na periferia?
Marisol: Ele não tinha problema com a periferia do ponto de vista de sua trajetória. Para a periferia, mais do que ter nascido lá, é ter compromisso. É essa mensagem que tem que passar. Os dois candidatos são da zona sul e da periferia, então ficou no zero a zero. Boulos saiu em uma certa desvantagem porque com ele tem que acreditar que ele vai fazer. E ele já carregava rejeições da ideia da ocupação, do MTST, que se confunde com invasão. Mas isso deu ao Boulos a ideia de que seria um prefeito vândalo? Não. Deu a ele agressividade. Ninguém acha que ele ia ocupar a Fiesp de novo. Todo mundo tinha certeza que não, inclusive porque ele tinha o apoio do Lula, e o perfil do Lula é ainda muito bem aceito na cidade. Mas deu a ele muita agressividade. E isso tira um pouco da confiança de que ele será capaz. Essa nuvem por trás dele era muito evidente, especialmente nos debates. No final da campanha ele passou a comunicação só com agressividade. Ele tinha ótimas propostas, mas priorizou os ataques e se mostrou errado, equivocado fazer só ataques. Quando abre mão de convencer a população que é confiável e que tem propostas que mostram que ele é capaz de fazer, ele perde uma coisa fundamental. O voto que ele teve é o que já teria, um voto que o PT tem na cidade, no 2º turno. Até que perdeu alguns. Ele não conseguiu avançar em um segmento que não achava o passado dele ruim, mas quando olhava para o futuro ficava preocupado.
Valor: Esse temor sobre o futuro pesou mais do que a rejeição?
Marisol: Foi mais isso do que aquela briga de rejeições. Nunes tinha pouca rejeição, mas muito pouca aprovação também. E ali os dois estavam um pouco iguais. E Boulos não tinha máquina, não foi experimentado. Tanto é que a Marta foi uma pessoa importantíssima na campanha dele, porque dava credibilidade do futuro. Tudo o que uma vice poderia entregar, ela entregou. Nos meus grupos [de pesquisa], ela aparecia como um problema para nós. Não que ela tirou votos, mas colocou dúvida nos que estavam indecisos. O campo mais lulista ficou com Boulos. Lula [na eleição de 2022] conquistou para além disso. Ele seria capaz de conquistar isso para Boulos? Acho que não, só se ele fosse candidato. Boulos teve voto de primeira mão do campo político representado por Lula, mas não conquistou um pouco além dos que votam no Lula, mas que não são necessariamente lulistas. Não conseguiu atingir o antibolsonarismo. A meta era passar do Lula, os antibolsonaristas, porque a cidade é mais antibolsonarista. Essa tarefa ele não cumpriu e não foi o Lula. Foi a candidatura.
Valor: Além de não ter a máquina e ter apostado na agressividade, o que mais ajuda a explicar as dificuldades de Boulos?
Marisol: O que definiu a eleição foi a máquina, com a ideia do 'fez, faz e fará' contra alguém que nunca governou e que abriu mão de colocar suas propostas em primeiro plano. A eleição é sobre a minha rua, o meu bairro, como vai melhorar a minha vida cotidiana. Essa conversa final Boulos não fez. E Nunes tinha capacidade para fazer e fez, tinha o que mostrar para projetar para o futuro. Ele zerou a fila em creche. Nos grupos ouvia-se muito isso - e não é pouca coisa para as mulheres. 'Não mudou a cidade, melhorou um pouco a minha vida. Foi pouco. Preciso mais e voto pelo futuro. Mas que melhorou um pouco a minha vida, melhorou'. Não foi uma eleição de uma nova cidade. Não foi. Não foram apresentados dois projetos de cidade. Foi uma eleição de como vai melhorar a minha vida amanhã. E aí é quem tem credibilidade ou não. E Nunes tem alguma credibilidade, maior do que a de Boulos porque fez, estava fazendo, tinha coisa que precisava terminar.
Valor: O prefeito não entregou nenhum CEU, obra simbólica na periferia e marca da gestão Marta
Marisol: Os CEUs são importantes e o que Nunes fez foi projetar. Ele não fez, mas o Boulos também não. Mas Nunes fez 30 UPAs e antes tinha três. Então é confiar que ele vai fazer. Na hora de comparar, faz diferença. Não foram colocadas para o eleitor questões fundamentais que pudessem fazê-lo sair da 'minha rua'. Os temas que vão melhorar minha vida simples, do cotidiano foram valorizados porque não tinha um projeto de cidade. [Em 2012] Quando Fernando Haddad começou a campanha, ele começou num plano geral, de movimentar a cidade pela periferia, de levar o capital para a periferia. É um outro patamar de discussão de cidade. A perspectiva de futuro era de mudança da cidade. Essa campanha não teve essa discussão.
Valor: A esquerda saiu enfraquecida das urnas e tem sido criticada por perder o vínculo com a periferia. Há cobranças por mudanças. Que avaliação faz disso e dos desafios?
Marisol: Estamos em um momento de fortalecimento do campo da individualidade e isso muda a forma de se projetar o futuro. A esquerda no mundo inteiro está com problema de projeto. No Brasil não é diferente. Eu acredito na esquerda porque tem posições que valorizam a humanidade, mas fora isso está um pouco esvaziada de construção de sociedade, do que é coletividade, do espaço público, das relações sociais. A esquerda está em um momento que vai ter que reconstruir tudo isso. E o PT não é diferente.
Valor: E em São Paulo, quais os reflexos do enfraquecimento da esquerda para o futuro?
Marisol: O paulistano é bem objetivo. Nesta eleição, a discussão não foi de projetos. Não acho que em São Paulo a esquerda tenha muita dificuldade em conversar. A eleição de Nunes significa um projeto de direita? Essa é uma resposta que a ciência política tem que dar, mas acredito que foi outro caminho. Lula tem uma vantagem aqui. É da esquerda? Não, é vantagem da esquerda que tem Lula como líder. Quando Lula desaparecer, a coisa vai ficar mais difícil. Mas acho que tem muitos canais, muitos ouvidos abertos para a esquerda conversar com São Paulo. Não é difícil. Claro que a direita, a extrema-direita está construindo seu campo. Mas o campo progressista tem mais espaço na cidade do que o mais reacionário. O extremo tem menos campo de atuação.
Valor
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