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Fernando Abrucio: Fora da frente ampla não há solução

Fernando Abrucio: Fora da frente ampla não há solução

Se não for possível criar uma ampla coalizão de diferentes em torno de pontos prioritários, alicerçada por uma aliança eleitoral e governativa, o Brasil poderá andar muito lento nos próximos anos


Por Fernando Luiz Abrucio

A pergunta da vez é quem foram os vencedores das eleições municipais. Alguns procuram respondê-la dizendo quem foram os partidos vitoriosos e os grandes perdedores. Outros trilharam esse caminho buscando os efeitos de 2024 sobre 2026, especialmente sobre o próximo Congresso Nacional e a disputa presidencial. Todo esse debate tem relevância, mas o processo eleitoral atual trouxe uma lição mais profunda: a forma de sair da polarização paralisante e construir uma nova forma de fazer política passa necessariamente pela construção estrutural de coalizões com identidade de frente ampla.

Num país multipartidário, com grande diversidade de identidades políticas territoriais e com forte peso do horário eleitoral de TV e rádio, a política pragmática incentiva a construção de coalizões eleitorais tão amplas quanto possível no plano da eleição para o Executivo. Essa é uma lei geral óbvia do sistema político brasileiro. Porém, o crescimento de uma polarização mais estanque, desde 2018, tem dificultado uma política baseada em alianças nas quais a multiplicidade de posições não seja engolida por uma única lente ideológica.

Em outras palavras, o bolsonarismo e, em menor medida, o lulismo, mesmo com todo o apelo que fez por uma frente de defesa da democracia em 2022, têm sido mais sectários e hegemonistas do que polos organizadores de posições diferentes em prol da produção de um projeto comum de país. Sem dúvida alguma, esse fenômeno é mais forte no lado bolsonarista, como mostram os diversos exemplos da eleição municipal nos quais Bolsonaro sabotou ou denunciou aliados de hoje e do passado, porque não seguiam a cartilha purista de seu radicalismo.

Tal comportamento sectário e sabotador de Bolsonaro reduziu inclusive o impacto do forte crescimento eleitoral de muitos de seus apadrinhados, particularmente nas capitais. Isso o tem levado a perder eleições nas quais tinha chances reais, e nos casos em que seu aliado radical for o vencedor, se seguir o mantra do purismo ideológico, com certeza não conseguirá governar as grandes cidades brasileiras, todas dependentes de coalizões amplas nas câmaras municipais.

Como se não bastasse esse erro estratégico, o modelo bolsonarista teve mais um baque nesta eleição: estão surgindo candidatos sob o signo da antipolítica que tendem a ser ainda mais radicais, o que vai estilhaçar o eleitorado de direita radical, dividindo votos e favorecendo o governismo nas eleições de 2026. Cada vez que Bolsonaro bate em Caiado ou despreza Zema, mais terá de brigar por votos com os nomes que surgirão das costelas do fenômeno Pablo Marçal.

No caso do PT, o fenômeno foi um pouco diferente: na maior parte das capitais não conseguiu montar previamente frentes amplas, seja porque seus candidatos se distanciavam das preferências medianas do eleitorado, seja porque não foi capaz de atrair ou se juntar a mais partidos. Quando o petismo esteve presente em grandes coligações multipartidárias, como protagonista ou apoiador, geralmente teve resultados mais positivos. O problema é que esse comportamento foi mais exceção do que regra.

O lulismo ainda terá muita força em 2026, em razão da liderança política de Lula, por conta do peso político do governo federal e, também, em virtude da força da centro-esquerda no Nordeste no plano da votação para governadorias e Presidência da República. É preciso, no entanto, ressaltar que o PT encurtou sua capacidade de montar alianças amplas, e isso vai enfraquecer paulatinamente o projeto político do partido, caso não se abra a diálogos com posições centristas para além da distribuição de cargos e verbas para o Centrão congressual.

A constatação da necessidade de se montar frentes amplas deve ir além de cálculos eleitorais de ocasião. Somente por essa via será possível construir alternativas à polarização paralisante e estanque que hoje domina a política brasileira. Os resultados de 2024 revelam o poder de coligações grandes, especialmente nas maiores cidades. Contudo, se observarmos qualitativamente o que tem acontecido no pleito de 2024, será possível ver algo mais profundo: os grandes nomes dessa disputa foram os líderes que conseguiram combinar a grande soma de votos com a capacidade de funcionar como ímãs de políticos e grupos sociais com posições diferentes.

O caminho da construção de uma frente ampla mais estrutural está à disposição de quem quiser ganhar e governar o Brasil para enfrentar os desafios do século XXI. Pelo que tem dito nos últimos anos, o bolsonarismo não está preparado para essa tarefa, e nesta eleição seu líder máximo e mais alguns chefetes radicais realçaram sua opção mais pelo sectarismo do que pela expansão de apoiadores. O lulismo tem o poder político para seguir essa trilha, mas ainda não o fez efetivamente. A ilusão poderá vir da vitória em mais uma eleição presidencial apertada, com governabilidade difícil no próximo quadriênio. A única saída para não cair nesta armadilha é alargar seus horizontes de agenda e apoio político.

Seguir a lógica da frente ampla é constatar que a geometria da política brasileira não pode ser entendida pela lógica dos pontos separados, cada qual tentando firmar uma identidade exclusiva. O único caminho geométrico para sair da polarização estanque é construir linhas como junção dos pontos. Neste sentido, as lideranças que quiserem tirar o sistema político da sua atual situação ensimesmada e de lentidão reformista terão que compreender que, para parafrasear o brilhante programa de entrevistas de meu amigo Cláudio Couto, fora da frente ampla não há salvação.

O modelo estrutural de frente ampla se justifica como opção estratégica de longo prazo por cinco razões: para obter maiorias eleitorais mais sólidas e diversas (1), para construir uma agenda mais consensual com força para orientar o jogo entre os Poderes (2), para abrir um espaço maior de diálogo em contraposição ao sectarismo da lógica polarizadora (3), para fortalecer as instituições democráticas hoje em embate estéril e desprotegidas dos autoritários de plantão (4), e, por fim, para facilitar a discussão sobre a necessária renovação política do país (5).

Uma lógica de ampliação frentista, em primeiro lugar, será essencial para se conseguir um resultado eleitoral mais expressivo em 2026 e nas eleições seguintes, caso um grupo e/ou a junção de linhas políticas queiram quebrar a polarização e a governabilidade truncada que temos hoje. Há dificuldades para os partidos mais ao centro ou de centro-direita montarem sozinhos essa frente ampla, pois sua base inicial de votos tende a ser, no momento, baixa. Todavia, mesmo que o lulismo tenha uma força eleitoral certamente maior, se quiser ter uma vitória mais farta, terá de montar uma coalizão eleitoral mais ampla do que a de 2022, não só em relação ao número de partidos, mas também no que se refere à agenda temática.

Aqui entra então um segundo motivo que justifica a montagem de frente ampla estrutural: o país só vai avançar para além da chantagem congressual e da pauta de assuntos que não tornam mais efetivas as políticas publicas caso consiga definir uma agenda consensual básica. A construção dessa lista reformista poderá reduzir os custos de negociação congressual e evitar a postergação de mudanças institucionais decisivas para o país.

Em terceiro lugar, é preciso ampliar o debate e a possibilidade de acordo entre posições diferentes. Uma frente ampla mais estrutural pode ser um dos passos importantes para enfraquecer o extremismo e a polarização estanque. Com muito diálogo e apresentação de evidências sobre as soluções mais adequadas, será possível definir uma pauta mais propositiva e menos paralisante, especialmente para enfrentar grandes desafios, como o combate às desigualdades, a questão ambiental e o desenvolvimento econômico.

O fortalecimento das instituições democráticas do país, hoje fragilizadas pelo conflito entre os Poderes e por grupos políticos autoritários, é um quarto ponto que pode ser mais bem equacionado dentro de uma lógica de frente ampla. Um consenso maior em relação às regras do jogo evitaria, por exemplo, a excrescência do projeto em tramitação na Câmara que defende a revisão congressual de decisões do STF! Nem o regime militar propôs isso e nenhuma democracia utiliza desse expediente nefasto. De todo modo, para superar esse lixo institucional, somente uma frente ampla que não fosse refém das chantagens populistas do bolsonarismo.

O ciclo virtuoso de uma frente ampla completa-se com a discussão sobre a renovação política do Brasil pós-Lula e pós-Bolsonaro, já preparando uma sucessão que poderá ser capaz de juntar setores da centro-direita, centro e centro-esquerda. Será difícil fazer essa passagem de bastão, inclusive geracional, em meio à polarização estanque, ou com posições políticas transformadas em pontos fora das linhas, como era a ideia da terceira via nas últimas eleições. Não é um caminho fácil nem tem resposta pronta.

Mas, se não for possível criar uma ampla coalizão de diferentes em torno de pontos prioritários, alicerçada por uma aliança eleitoral e governativa, o Brasil poderá andar muito lento nos próximos anos ou, pior, retroceder, como ocorreu no período Bolsonaro. Fica a pergunta: quem serão os líderes a colocar esse tema na mesa?

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente

Valor
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