"Ser de esquerda, hoje, é afirmar um compromisso inegociável com as liberdades democráticas e a defesa dos direitos fundamentais. Em um mundo onde forças conservadoras muitas vezes ameaçam reverter conquistas sociais e políticas, o papel da esquerda é garantir que esses direitos não sejam apenas mantidos, mas também ampliados. Isso inclui uma luta contínua contra as desigualdades que o capitalismo reforça, especialmente a ideia de igualdade apenas no ponto de partida."
Texto de João Antonio da Silva Filho
O debate entre esquerda e direita, que já existia no século XIX, alcançou uma dimensão ainda mais intensa no século XXI. Nunca antes na história humana essas categorias políticas foram tão discutidas e polarizadas, com cada lado reivindicando o monopólio sobre a verdade moral e econômica. Embora as ideias de esquerda e direita tenham suas raízes em tradições filosóficas e políticas distintas, a atualidade trouxe novas nuances e complexidades ao debate, com o mundo testemunhando uma fragmentação política global que desafia as fronteiras tradicionais dessas ideologias.
No período pós-Segunda Guerra Mundial, ser de direita era muitas vezes associado ao nazifascismo, uma mancha histórica difícil de ser apagada. O impacto devastador do nazismo e do fascismo, ideologias de extrema-direita que promoveram genocídios e guerras devastadoras, tornou o termo "direita" algo que poucos queriam assumir. A direita, associada ao conservadorismo e ao nacionalismo autoritário, precisou se reinventar após 1945 para se dissociar desse passado sombrio, ao passo que a esquerda parecia encarnar a resistência ao totalitarismo de direita.
Por outro lado, a ascensão do comunismo soviético, marcada pela Revolução de 1917 e pela criação da União Soviética, ofereceu uma alternativa concreta ao capitalismo. O socialismo, liderado por Lenin e depois por Stalin, prometia uma sociedade sem classes e uma nova ordem econômica que desafiava diretamente o domínio capitalista ocidental. Isso estabeleceu uma divisão clara no mundo: de um lado, os países capitalistas, majoritariamente de direita, e, do outro, a União Soviética e seus aliados de esquerda, lutando pelo que consideravam um futuro mais justo.
Durante a Guerra Fria, essa polarização se intensificou. O mundo foi dividido entre dois blocos: o Ocidente capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, liderado pela União Soviética. O papel determinante da União Soviética na derrota do nazismo durante a Segunda Guerra deu-lhe prestígio, e a esquerda mundial cresceu em força e influência, especialmente na Europa. Com isso, a direita teve de moderar suas posições, já que uma associação com qualquer tipo de autoritarismo ou conservadorismo extremo era politicamente inviável no novo cenário global.
Nesse contexto, os países do Ocidente, pressionados pela ameaça comunista, adotaram reformas sociais e econômicas significativas. O surgimento do Estado de bem-estar social foi uma resposta direta à necessidade de melhorar as condições de vida da população trabalhadora, sob o risco de que movimentos de esquerda ganhassem ainda mais força. A direita, para evitar a revolução, fez concessões, aceitando reformas que promoveram maior igualdade social e direitos trabalhistas. Isso foi chamado de "entregar os anéis para não perder os dedos".
O Estado de bem-estar social é caracterizado por uma série de políticas que visam garantir a segurança social e econômica dos cidadãos, através de sistemas de saúde pública, previdência social, educação gratuita e programas de redistribuição de renda. Essas políticas, implementadas fundamentalmente em países da Europa Ocidental, mas também em outros estados, trouxeram melhorias significativas na qualidade de vida e serviram para manter a estabilidade social em tempos de grande tensão política.
Com o colapso da União Soviética em 1991, encerrou-se um ciclo histórico. O socialismo soviético, que buscou representar uma alternativa viável ao capitalismo, foi derrotado. Sem a ameaça do comunismo, o liberalismo econômico e político voltou a se consolidar, mas a ausência desse "inimigo" ideológico trouxe consequências imprevistas. A direita, sem o fantasma do comunismo para moderá-la, passou a adotar posturas cada vez mais extremas, desafiando abertamente as conquistas civilizatórias do pós-guerra.
Nos dias atuais, vemos uma direita que não hesita em defender retrocessos em questões como direitos trabalhistas, igualdade de gênero, proteção ambiental e direitos civis. Esses ataques às conquistas progressistas são, em parte, uma reação ao enfraquecimento das forças de esquerda, que, após a queda do bloco soviético, perderam muito de seu poder de mobilização.
Ser de esquerda hoje, portanto, envolve não só uma luta por justiça social, mas também a defesa de conquistas que pareciam garantidas, mas que agora estão sob ameaça. O desafio da esquerda no século XXI é se reinventar, construir uma nova narrativa capaz de inspirar a esperança e a ação, sem a sombra de um modelo comunista soviético a orientá-la. Por outro lado, a direita, revigorada pela ausência de oposição forte, busca consolidar um novo equilíbrio de poder, muitas vezes à custa dos mais vulneráveis.
Ser de esquerda, hoje, é afirmar um compromisso inegociável com as liberdades democráticas e a defesa dos direitos fundamentais. Em um mundo onde forças conservadoras muitas vezes ameaçam reverter conquistas sociais e políticas, o papel da esquerda é garantir que esses direitos não sejam apenas mantidos, mas também ampliados. Isso inclui uma luta contínua contra as desigualdades que o capitalismo reforça, especialmente a ideia de igualdade apenas no ponto de partida. A verdadeira justiça está na igualdade material, no ponto de chegada, onde todos possam compartilhar dos benefícios coletivos de maneira justa e digna.
Além disso, ser de esquerda é rejeitar o individualismo competitivo que permeia o sistema neoliberal. Em vez de uma sociedade pautada na busca incessante por vantagem individual, a esquerda propõe um modelo baseado na solidariedade, tanto entre povos quanto entre indivíduos. Isso significa reconhecer a interdependência que une a humanidade e trabalhar por um mundo onde a cooperação prevaleça sobre a competição desenfreada, promovendo políticas que incentivem a inclusão e o apoio mútuo.
A luta contra qualquer forma de discriminação é igualmente central. A esquerda não pode tolerar o racismo, o sexismo, a homofobia ou qualquer outro tipo de preconceito que divida a sociedade. Essa postura é fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e plural. O combate ao racismo, em particular, é uma batalha de longo prazo, que exige ação direta e políticas públicas que promovam a reparação histórica e a inclusão social dos grupos mais vulneráveis.
A meritocracia, frequentemente apresentada como um ideal justo, é desmascarada pela esquerda como um mito que perpetua a desigualdade. Num sistema que privilegia aqueles que já possuem vantagens econômicas, sociais e culturais, a meritocracia apenas reforça a exclusão e deixa para trás a imensa maioria das pessoas vulnerabilizadas. O papel da esquerda é questionar esse discurso, propondo alternativas que ofereçam oportunidades reais e equitativas para todos, independentemente de sua origem ou classe social.
Por fim, ser de esquerda é não desistir da construção de uma sociedade onde as riquezas produzidas pelo esforço coletivo sejam distribuídas de forma equitativa. Isso exige uma crítica profunda ao modelo econômico vigente, que concentra riqueza nas mãos de poucos, enquanto a maioria luta para sobreviver. A defesa de uma economia justa e solidária é uma característica essencial da esquerda, que busca sempre novas formas de organizar a produção e a distribuição de riqueza, para que todos possam viver com dignidade e prosperidade.
COMENTÁRIOS DERRADEIROS
O comunismo soviético, apesar de seus avanços iniciais em criar uma alternativa ao capitalismo, sucumbiu em grande parte devido a seus erros internos, seu viés autoritário e sua incapacidade de equilibrar liberdades individuais e direitos coletivos. A centralização extrema do poder, a repressão das dissidências e a falta de espaço para a expressão das diferenças humanas resultaram num sistema rígido e insustentável. A experiência soviética deixou uma lição valiosa para a esquerda: a construção de uma sociedade justa e igualitária só será possível se as diferenças inerentes ao ser humano forem respeitadas e valorizadas, sem o sacrifício da liberdade individual em nome de um ideal coletivo. Equilíbrio: essa é a máxima.
O grande desafio que se apresenta à esquerda contemporânea é construir uma sociedade onde a diversidade seja não apenas aceita, mas celebrada, e onde a composição das diferenças não seja imposta por estruturas autoritárias, mas sim construídas através da via do consenso progressivo. Isso significa promover o diálogo, a inclusão e a participação democrática de todos os setores da sociedade, buscando soluções que equilibrem os direitos individuais com o bem-estar coletivo. A composição das diferenças deve ser o resultado de um processo contínuo de negociação e consenso, onde as liberdades e as necessidades se harmonizam, criando um caminho para um futuro mais justo e inclusivo.
JOÃO ANTONIO DA SILVA FILHO é mestre em filosofia do direito e doutor em direito público, conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e vice presidente da ATRICON - Associação dos Membros dos Tribunais do Brasil.
https://joaoantonio837.wordpress.com/2024/10/19/ser-de-esquerda-hoje-a-reconstrucao-de-um-proposito-caro-para-humanidade/