Centrão sai vitorioso para próxima legislatura, diz o cientista político Carlos Melo
Por Raphael Di Cunto - De Brasília
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tiveram papel secundário nestas eleições municipais, mas o resultado não é representativo de quem estará forte na próxima eleição presidencial, afirma o cientista político Carlos Melo, mestre e doutor pela PUC-SP e professor do Insper. Quem saiu vitorioso, afirma, é o Centrão, que elegeu a maioria dos prefeitos e larga na frente para continuar a comandar o Congresso na próxima legislatura.
Do lado de Lula, a perda de popularidade em relação a mandatos anteriores e o aumento do antipetismo o fizeram optar por postura mais distante. No caso de Bolsonaro, houve perda de segmentos importantes do seu eleitorado para outros atores, como o influenciador Pablo Marçal (PRTB) e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
"Esse laudo pode ter sido a Carla Zambelli do Marçal", diz o professor, em referência a repercussão negativa de a deputada federal ter corrido armada atrás de um militante de esquerda na véspera do segundo turno de 2022. Ele ressalta, porém, que a despeito de tudo que ocorreu na campanha, Marçal teve 1,7 milhão de votos, o que mostra que há um setor em disputa. Leia os principais trechos da entrevista:
Valor: O presidente Lula teve participação tímida na campanha e, diferentemente de eleições anteriores, praticamente não se envolveu. Qual o motivo disso?
Carlos Melo: Muita coisa mudou entre o segundo mandato e este terceiro. Lá atrás, o Lula gozava de popularidade extraordinária. Encerrou o segundo mandato com popularidade superior a 80%. Hoje a popularidade do governo está em torno de 35%, 40%. A do presidente é um pouco maior. Outra questão é que o PT sempre foi um partido controverso, mas a partir da Lava-Jato e da crise econômica do governo Dilma, o antipetismo cresceu muito. Também é importante frisar que se passaram 14 anos. O presidente hoje tem 78 anos, a disposição física diminui. Por fim, o ambiente da campanha está mais agressivo e é necessário guardar certo espaço de autoridade do cargo.
Valor: Mas isso teve consequências para as campanhas a prefeito?
Melo: Um erro que muitos analistas cometeram antes da campanha foi dar fundamental importância para a disputa entre o Lula e o Bolsonaro. Eles têm importância, têm piso [de votos] bastante alto, mas têm teto baixo. Ajudam até um ponto, mas a partir daquele ponto param de ajudar - e acho que eles transferiram [de votos] o que poderiam.
Valor: Boulos apostava em maior participação do Lula para deslanchar entre os eleitores de baixa renda, mas isso não aconteceu.
Melo: Em São Paulo, a esquerda sempre teve mais dificuldade no centro e mais força na periferia. Mas, antes mesmo antes da campanha, já havia dados que mostravam que nesta eleição não seria bem assim. O adversário também joga e houve ações da prefeitura nestas regiões. Na zona sul, o Nunes ganhou de lavada. O Lula não tem uma varinha de condão de chegar lá e ser seguido por todo mundo.
Valor: Nunes é o favorito ou Boulos ainda tem chance de virar?
Melo: Claro que, aparentemente, o Nunes é favorito. Mas há fatores negativos para ele. A máquina de campanha, os candidatos a vereador, estarão mais desmobilizados. O tempo de propaganda na TV será igual ao do Boulos. E é preciso verificar como o eleitor do Marçal vai se comportar porque os embates entre eles pegaram fogo, Marçal dizia que seria eleito e iria colocá-lo na cadeia. Pode ter aumento nos votos em branco, nulos e abstenções com um primeiro turno tão acirrado.
Valor: Bolsonaro se engajou mais nas campanhas. Qual o resultado dessa participação?
Melo: O eleitor do Bolsonaro em 2018 e 2022 não é um todo coeso. É fragmentado. Podemos, grosso modo, dividi-lo em três partes: o mais extremista e antipolítica; o conservador/religioso; e o da direita que se diferencia desse eleitor antissistema - que acho inapropriado chamar de moderada porque, quando se alia com o extremismo, deixa de ser moderada. Temos que olhar para esse conjunto e ver o que aconteceu. O Bolsonaro não é um líder que as pessoas seguem como se fosse o salvador do futuro, um cara que rompe águas e as pessoas seguem ele. Ele é a expressão de um sentimento político de uma parcela da sociedade.
Valor: E como se comportaram?
Melo: O setor extremista nunca se encantou pelo Ricardo Nunes. Esse eleitor é antissistema e o Ricardo Nunes é o político tradicional. Esse eleitor se encantou pela fúria antissistêmica do Pablo Marçal. E o Bolsonaro comete um erro tático: ao invés de enfrentar o Marçal, ele ficou silente, receoso. O [governador] Tarcísio [de Freitas] percebe um certo vazio, banca o Nunes e avança na direita não radical. Ou seja, o Bolsonaro vai perdendo parte da extrema direita para o Marçal e a direita que não é extrema para o Tarcísio. E fica à mercê do setor conservador religioso e evangélico. Ao longo desse processo, você vê que o Bolsonaro está dependente de figuras hoje das quais ele não dependia no passado.
Valor: Ele sai enfraquecido?
Melo: É bom lembrar que ele não foi bem nas eleições municipais de 2020. O Celso Russomanno era o candidato dele em São Paulo e ficou fora do segundo turno. Mas as eleições estão mostrando o Bolsonaro num tamanho muito menor do que se imaginava e esses setores vão se identificando com outras referências. São Paulo é a joia da coroa. O Marçal teve 28% dos votos ao arrepio da vontade do Bolsonaro. E o Nunes chegou a 30% dos votos a despeito do Bolsonaro. Neste segundo turno, se é que a gente pode colocar disputa entre padrinhos, será entre Tarcísio e Lula, e não entre Bolsonaro e Lula.
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tiveram papel secundário nestas eleições municipais, mas o resultado não é representativo de quem estará forte na próxima eleição presidencial, afirma o cientista político Carlos Melo, mestre e doutor pela PUC-SP e professor do Insper. Quem saiu vitorioso, afirma, é o Centrão, que elegeu a maioria dos prefeitos e larga na frente para continuar a comandar o Congresso na próxima legislatura.
Do lado de Lula, a perda de popularidade em relação a mandatos anteriores e o aumento do antipetismo o fizeram optar por postura mais distante. No caso de Bolsonaro, houve perda de segmentos importantes do seu eleitorado para outros atores, como o influenciador Pablo Marçal (PRTB) e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
"Esse laudo pode ter sido a Carla Zambelli do Marçal", diz o professor, em referência a repercussão negativa de a deputada federal ter corrido armada atrás de um militante de esquerda na véspera do segundo turno de 2022. Ele ressalta, porém, que a despeito de tudo que ocorreu na campanha, Marçal teve 1,7 milhão de votos, o que mostra que há um setor em disputa. Leia os principais trechos da entrevista:
Valor: O presidente Lula teve participação tímida na campanha e, diferentemente de eleições anteriores, praticamente não se envolveu. Qual o motivo disso?
Carlos Melo: Muita coisa mudou entre o segundo mandato e este terceiro. Lá atrás, o Lula gozava de popularidade extraordinária. Encerrou o segundo mandato com popularidade superior a 80%. Hoje a popularidade do governo está em torno de 35%, 40%. A do presidente é um pouco maior. Outra questão é que o PT sempre foi um partido controverso, mas a partir da Lava-Jato e da crise econômica do governo Dilma, o antipetismo cresceu muito. Também é importante frisar que se passaram 14 anos. O presidente hoje tem 78 anos, a disposição física diminui. Por fim, o ambiente da campanha está mais agressivo e é necessário guardar certo espaço de autoridade do cargo.
Valor: Mas isso teve consequências para as campanhas a prefeito?
Melo: Um erro que muitos analistas cometeram antes da campanha foi dar fundamental importância para a disputa entre o Lula e o Bolsonaro. Eles têm importância, têm piso [de votos] bastante alto, mas têm teto baixo. Ajudam até um ponto, mas a partir daquele ponto param de ajudar - e acho que eles transferiram [de votos] o que poderiam.
Valor: Boulos apostava em maior participação do Lula para deslanchar entre os eleitores de baixa renda, mas isso não aconteceu.
Melo: Em São Paulo, a esquerda sempre teve mais dificuldade no centro e mais força na periferia. Mas, antes mesmo antes da campanha, já havia dados que mostravam que nesta eleição não seria bem assim. O adversário também joga e houve ações da prefeitura nestas regiões. Na zona sul, o Nunes ganhou de lavada. O Lula não tem uma varinha de condão de chegar lá e ser seguido por todo mundo.
Valor: Nunes é o favorito ou Boulos ainda tem chance de virar?
Melo: Claro que, aparentemente, o Nunes é favorito. Mas há fatores negativos para ele. A máquina de campanha, os candidatos a vereador, estarão mais desmobilizados. O tempo de propaganda na TV será igual ao do Boulos. E é preciso verificar como o eleitor do Marçal vai se comportar porque os embates entre eles pegaram fogo, Marçal dizia que seria eleito e iria colocá-lo na cadeia. Pode ter aumento nos votos em branco, nulos e abstenções com um primeiro turno tão acirrado.
Valor: Bolsonaro se engajou mais nas campanhas. Qual o resultado dessa participação?
Melo: O eleitor do Bolsonaro em 2018 e 2022 não é um todo coeso. É fragmentado. Podemos, grosso modo, dividi-lo em três partes: o mais extremista e antipolítica; o conservador/religioso; e o da direita que se diferencia desse eleitor antissistema - que acho inapropriado chamar de moderada porque, quando se alia com o extremismo, deixa de ser moderada. Temos que olhar para esse conjunto e ver o que aconteceu. O Bolsonaro não é um líder que as pessoas seguem como se fosse o salvador do futuro, um cara que rompe águas e as pessoas seguem ele. Ele é a expressão de um sentimento político de uma parcela da sociedade.
Valor: E como se comportaram?
Melo: O setor extremista nunca se encantou pelo Ricardo Nunes. Esse eleitor é antissistema e o Ricardo Nunes é o político tradicional. Esse eleitor se encantou pela fúria antissistêmica do Pablo Marçal. E o Bolsonaro comete um erro tático: ao invés de enfrentar o Marçal, ele ficou silente, receoso. O [governador] Tarcísio [de Freitas] percebe um certo vazio, banca o Nunes e avança na direita não radical. Ou seja, o Bolsonaro vai perdendo parte da extrema direita para o Marçal e a direita que não é extrema para o Tarcísio. E fica à mercê do setor conservador religioso e evangélico. Ao longo desse processo, você vê que o Bolsonaro está dependente de figuras hoje das quais ele não dependia no passado.
Valor: Ele sai enfraquecido?
Melo: É bom lembrar que ele não foi bem nas eleições municipais de 2020. O Celso Russomanno era o candidato dele em São Paulo e ficou fora do segundo turno. Mas as eleições estão mostrando o Bolsonaro num tamanho muito menor do que se imaginava e esses setores vão se identificando com outras referências. São Paulo é a joia da coroa. O Marçal teve 28% dos votos ao arrepio da vontade do Bolsonaro. E o Nunes chegou a 30% dos votos a despeito do Bolsonaro. Neste segundo turno, se é que a gente pode colocar disputa entre padrinhos, será entre Tarcísio e Lula, e não entre Bolsonaro e Lula.
Se não fosse o laudo falso, talvez Marçal tivesse ido para o segundo turno em SP"
Carlos Melo
Valor: O que essas performances apontam para 2026 então?
Melo: A eleição nacional tem peso de identificação política muito mais forte do que a eleição municipal. Essa história de falar que a eleição municipal vai influenciar o jogo da eleição nacional lá na frente é um erro. Isso não condiz com os dados e a realidade. O peso da eleição municipal é para a eleição proporcional, nas câmaras municipais, assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados. Mas não define quem vai ser forte e quem vai ser fraco na eleição nem para governador, nem para senador, nem para presidente da República.
Valor: O que indica o resultado desta eleição para o próxima composição do Congresso Nacional?
Melo: O Centrão tende a manter a sua força no Congresso. Esses partidos - PSD, MDB, PP, União, Republicanos - tiveram mais de 40% dos votos. Mostra o quanto as tais das emendas impositivas, do orçamento secreto, podem ter importância.
Valor: A segurança pública era a maior preocupação dos eleitores, desbancando a saúde pela primeira vez. Qual o motivo desta mudança?
Melo: Dois fatores. Roubos e assaltos cresceram muito no Brasil inteiro porque todo mundo anda hoje no bolso com um celular. Além do valor do aparelho, o bandido tem a possibilidade de acessar o banco da pessoa com isso, o que aumentou muito a insegurança. Outro fator foi a influência do crime organizado. Vimos prefeitos denunciados por relação com o PCC e outros grupos criminosos, vereadores sendo envolvidos com isso - culpados ou não, essa é outra história. Isso tudo criou caldo de cultura que soma as duas coisas.
Valor: E a resposta dos políticos a essas preocupações, ocorreu?
Melo: Esse debate foi infelizmente mal qualificado, muito raso, como tudo nesta eleição. Acusações, de vários lados, de envolvido com o PCC. Pouquíssimas candidaturas tentaram discutir políticas urbanas em sua complexidade. No policiamento urbano, você pode mitigar os crimes com postura mais ativa das guardas municipais, mas nas questões envolvendo as polícias civil, militar e federal, os prefeitos têm pouca importância mesmo. O que ele pode fazer é iluminação pública, cuidar da paisagem urbana, criar espaços para lazer de jovens à noite.
Valor: Por que esse debate não ocorreu nas eleições municipais?
Melo: Pelo tamanho da resposta que eu te dei: em uma rede social, as pessoas vão chamar isso de "textão" e não vão chegar até o fim. Essa complexidade não combina com a rede social, onde a atenção é de segundos. Um debate sério requer aprofundamento, foco, e as redes sociais não estão propensas a isso, têm dinâmica imediatista e superficial. A cadeirada, a imagem fala por si. O murro, a imagem fala por si. Agora, a política pública não fala por si. O que aconteceu é que a política se dobrou a essa instantaneidade das redes.
Valor: O modelo Marçal de fazer campanha chegou para ficar?
Melo: Não é só ele. Boa parte da sociedade foi pega de surpresa em 2018, assim como foi pega de surpresa nos Estados Unidos em 2016 e na Inglaterra durante o Brexit. O Marçal não inventou a internet, não inventou o tal do 'influencer', mas vai aperfeiçoando e sofisticando o uso desse instrumento. É como a inteligência artificial. Muita gente não sabe a real capacidade desse instrumento, mas quem se dedica a isso vai perceber primeiro que os outros e saber como explorar.
Valor: A tradição da ciência política diz que o candidato não deve agredir porque isso traz rejeição. A internet mudou essa lógica?
Melo: Na política analógica, o centro do eleitorado era o eleitor moderado. A direita e a esquerda tinham que convergir para o centro. Mas o que aconteceu nas últimas décadas é que esse eleitor, que a ciência política chamava de mediano, já não é mais o centro do sistema. Ele acaba sendo atraído para aquilo que ele vai achar que é o mal menor.
Valor: Havia grande preocupação com as "deep fakes" nesta eleição, mas não houve nenhum caso de grande repercussão. Por quê?
Melo: A gente não sabe. Esse tipo de boato é divulgado de última hora, num processo subterrâneo nas redes sociais, sobretudo no WhatsApp e Telegram, e que não temos conhecimento pleno. O que teve de maior repercussão nesta eleição foi "fake" [falso], mas não foi "deep" [no submundo].
Valor: O laudo falso divulgado pelo Marçal foi decisivo?
Melo: Esse laudo pode ter sido a Carla Zambelli do Marçal. Foi de uma ousadia e picaretagem extraordinárias. Se não fosse esse laudo, talvez o Marçal tivesse ido para o segundo turno.
Valor: O que vai acontecer com ele? Concorrerá a presidente?
Melo: Não sabemos. O Marçal deve ser processado na esfera eleitoral, civil e criminal. Pode estar inelegível em 2026. E, mesmo elegível, é preciso ver se algum partido grande aceitaria dar estrutura para ele. Mas, vai-se o Marçal, pode vir um outro que aproveite esse mercado, muito sensível a este tipo de mensagem da tal da teologia da prosperidade, a essa vulgarização sem sentido de palavras como meritocracia e empreendedorismo. Ele teve os votos de 1,7 milhão de pessoas, a despeito de tudo que se soube.
Valor: Nas capitais, 11 prefeitos foram reeleitos, alguns com apoio acima de 80%, e 6 estão no segundo turno. Só 4 foram derrotados. Que fator levou a isso?
Melo: A reeleição foi feita para reeleger. Quando não reelege, é exceção. Dada a cultura política no Brasil, a máquina é muito importante. É justamente por isso que a gente tem que ter um olho especial para o Ricardo Nunes. Ele poderia ter chegado muito melhor e ainda não sabemos os motivos. É falta de carisma? Má gestão? Ou o fenômeno Marçal? Só o segundo turno vai dizer.
Valor
https://valor.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/07/por-que-lula-e-bolsonaro-tiveram-papel-secundario-no-pleito.ghtml