A viola sempre foi um instrumento popular, das classes subalternizadas e oprimidas, escreve Ivan Vilela | Imagem: Rodrigo Denúbila / Flickr / CC BY-SA 2.0
Força da viola caipira está nas raízes populares e no saber oral

Força da viola caipira está nas raízes populares e no saber oral

Novo livro do violeiro e professor da USP Ivan Vilela é manifesto em defesa dos saberes populares

O novo livro de Ivan Vilela, violeiro, compositor, arranjador e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, é um manifesto. A favor do povo e do que é popular, do que o País tem de mais próprio a oferecer a si próprio e ao mundo. Palavras de combate ao elitismo e ao etnocentrismo que passeiam por corredores de universidades, escolas de música e gabinetes acadêmicos. É sequestro da escrita em favor da oralidade. E tudo partindo da viola caipira, o instrumento musical que Vilela elegeu para sua vida.

Publicado pela Ateliê Editorial, História e Cultura no Som da Viola - Ensaios e Relatos sobre Cultura Popular defende, desenvolve e conecta três afirmações que, tão logo lidas, parecem obviedades. Contudo, do tipo que carece justamente de um olhar sensível como o de Ivan Vilela para germinar. Primeira: a viola sempre foi um instrumento popular, das classes subalternizadas e oprimidas. Segunda: a base do aprendizado e reprodução da cultura brasileira foi, até bem pouco tempo, a oralidade. Terceira: o aprendizado musical e de outros saberes lotados em nossas instituições de ensino deveria valorizar essas formas populares e orais que representam a força e a originalidade do Brasil.

Proposições embasadas. Vilela passou quase três anos em Portugal como o pesquisador responsável do Projeto Atlas - Atlântico Sensível, do Instituto de Etnomusicologia da Universidade de Aveiro. Nesse período, investigou as interações sociais que a viola, instrumento de origem portuguesa, proporcionou no Atlântico lusófono. O livro que chega agora às livrarias é, em grande parte, resultado dessa experiência.

Nas terras lusitanas, o professor rastreou as origens da viola a partir de documentos oficiais, relatos e textos literários. A partir deles, identificou que o instrumento, desde suas primeiras menções, sempre apareceu conectado às camadas populares. "Já há muitos estudos sobre a viola e sua origem, mas em nenhum momento pensou-se que esse instrumento manteve, além das cinco ordens de cordas, uma outra característica comum ao longo de sua existência, que foi a de sempre ter estado ligada às mãos de pessoas humildes, desde sua origem em Portugal até sua vinda e permanência no Brasil, ao longo de cinco séculos", escreve Vilela.

Os comentários mais antigos a respeito da viola surgem em Portugal nos séculos 15 e 16, atestando seu uso por tipos populares. O dramaturgo Gil Vicente a classificou como instrumento de escudeiros, ou seja, militares de baixa patente. O escritor Francisco Manuel de Melo a rotulou como atributo de "farsolas, metediços e amigos dos diabos". Nessa mistura de ojeriza e fascínio que perpassa os relatos reunidos por Vilela, desenha-se o lugar ocupado pela viola: nas ruas, longe das cortes dominadas por instrumentos como o alaúde e a vihuela espanhola.

No Brasil, onde a viola chegou com as caravelas, foi mobilizada pelos jesuítas para catequese e ganhou o território com bandeirantes e tropeiros, não foi diferente. Analisando a documentação iconográfica brasileira produzida no período colonial e ao longo do século 19, o autor encontra pistas de que por aqui a viola também pertenceu ao povo. Ao observar os quadros pintados por Debret, Rugendas, Almeida Júnior, Pereira da Silva e outros artistas, Vilela notou que os tipos sociais de classes mais abastadas sempre aparecem tocando a bandurra ou a bandola, instrumentos de cordas com fundo arredondado.

Enquanto isso, entre os tipos humildes - o caipira e o negro - é a viola que surge em suas mãos. Isso se confirma nas fotografias reunidas pelo professor e também na reprodução de recortes de jornal. Nestes, os anúncios de negros escravizados fugidos trazem frequentemente menções aos seus dotes com a viola. Já a associação do instrumento com os caipiras e o meio rural remete à sua substituição nos meios urbanos pela guitarra francesa - o violão -, que relegou a viola, assim como uma série de manifestações populares, como as festas do divino e as folias de reis, para o interior.

Para Vilela, essa permanência no seio das camadas populares é uma das chaves que explicam a longevidade da viola no panorama cultural brasileiro. Porque, diferentemente de instrumentos tão antigos como o alaúde ou o cravo, a viola não se tornou restrita a grupos de música antiga ou virou peça de museu. Longe disso. A partir da metade do século 20, e sobretudo dos anos 1990, houve um reavivamento do interesse pelo instrumento, que expandiu suas fronteiras para orquestras de violeiros, músicos concertistas, intercâmbios com a música popular brasileira e até mesmo a universidade: a USP possui atualmente dois bacharelados no instrumento, na ECA e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP).



O professor Ivan Vilela: "A base do aprendizado e reprodução da cultura brasileira foi, até bem pouco tempo, a oralidade" - Foto: Wikipedia / CC BY 3.0 BR

"Das muitas raízes que teve, a viola hoje cria asas", escreve o professor. "Olhando agora, penso que tenha sido fundamental a permanência da viola no âmbito das classes mais pobres, que historicamente são menos mutáveis no que toca aos costumes e usos de artefatos." Um cenário diferente do que Vilela viu em Portugal. Lá, o professor encontrou a viola como que parada no tempo, seja pela maneira como é construída, seja pelo repertório que lhe diz respeito. Resultado, em grande medida, de determinações políticas, como sugere o autor, elaborando um paralelo a respeito dos destinos da viola sob os regimes autoritários de António Salazar, em Portugal, e Getúlio Vargas, no Brasil.

Na Europa, registra Vilela, a estratégia paternalista de Salazar para o campo cultural contemplou a valorização das raízes rurais do povo. Atuando junto aos ranchos folclóricos, o governo favoreceu um processo de institucionalização de determinados aspectos da cultura popular, nos quais a viola acabou sendo "musealizada". Preservar significou não mudar e, assim, o instrumento acabou confinado a manifestações que se preocupavam em manter as formas das festas, das danças, das roupas, das músicas e dos objetos. Nesse processo, o conteúdo dessas manifestações foi se tornando cada vez mais rarefeito e sem conexão com o próprio povo. Com isso, a viola tornou-se um instrumento de poucos e para poucos.

Já no Brasil, a política de Getúlio Vargas para a cultura privilegiou as manifestações urbanas, notadamente do Rio de Janeiro, elegendo o samba como grande símbolo nacional. Assim, a viola, atrelada ao meio rural - que estava associado às elites políticas do café com leite, tiradas de cena por Vargas -, acabou entregue à própria sorte, nos braços do povo. Obviamente, isso trouxe problemas como a falta de incentivos e recursos. Contudo, também proporcionou ao instrumento se transformar e se adaptar tanto em seus formatos, materiais e modos de construção quanto nos espaços e músicas nos quais passou a ser utilizada. Se hoje ela transita da música sertaneja às salas de concerto, é porque manteve-se viva e instigante na cultura.

"Se a celebração das manifestações culturais, sendo institucionalizada, pode ter engessado as expressões do folclore em Portugal, no Brasil a falta de institucionalização ou de apoios governamentais a esse segmento da cultura deixou essas manifestações à deriva, de modo que sobreviveram por conta própria ao longo dos tempos, trabalhando dentro do parco limite de seus recursos financeiros, que eram provenientes, em grande parte, de pequenas doações", escreve o autor. "Isso deu-lhes uma grande liberdade de não fixarem suas formas, fazendo-as depender integralmente da maneira como respondiam às situações que lhes eram apresentadas."

Um dos aspectos que mais interessam a Vilela nessa permanência da viola entre as camadas populares é o papel desempenhado pela oralidade no aprendizado do instrumento e em seu desenvolvimento criativo. O vigor e a inventidade em torno do instrumento foram fruto, em grande parte, de um saber não cristalizado pela palavra escrita, mas que se transforma e se enriquece justamente por levar, a cada nova transmissão, um pouco de quem transmite. Essa constatação é a base para uma reflexão que parte da viola e abarca todo o domínio da cultura popular, permitindo ao professor ir além.

Vilela situa a oralidade como o principal método de conhecimento e aprendizado do Brasil ao longo de sua história. Método que deveria ser reconhecido e valorizado. O autor pontua que o conhecimento escrito se consolidou no País apenas no século 20. Um bom exemplo disso é o fato de que a primeira instituição de ensino que propôs a reunião de saberes surgiu no País apenas em 1934, com a fundação da Universidade de São Paulo. E nem é preciso comentar muito sobre a alfabetização geral da população, que levou mais tempo ainda. Assim, grande parte do conhecimento produzido no Brasil ao longo de 300 anos foi construído e transmitido de maneira oral. Uma forma de conhecimento que não deveria ser rejeitada ou vista como menor ou informal, mas sim reconhecida como plena de possibilidades e constitutiva de quem somos.

"Observo que, no Brasil, toda a construção de conhecimentos pela via oral durante mais de 300 anos foi jogada pelo ralo ao introduzirmos nas nossas formações, sem dialogar com o que aqui existia, somente métodos e metodologias do 'mundo culto europeu' baseados no saber escrito", aponta Vilela. O autor se ressente sobretudo desse movimento em seu próprio campo, o ensino musical. A importação de padrões da música europeia do século 19, dita erudita ou clássica, fechou as portas de universidades e conservatórios para a riqueza da música popular, criação de tradições orais nas quais a leitura musical e a partitura cedem espaço ao "tirar de ouvido" e ao processo de imitação criativa, quando aprender e criar se tornam indissociáveis.

O professor sentiu na pele o preconceito do meio acadêmico, conforme conta no livro. Colegas de departamento não o cumprimentavam e estudantes questionavam sua capacidade de ler partituras. Tudo porque seu instrumento vinha da cultura popular. Isso mudou. Mas, para Vilela, o ganho não é apenas da viola, que vem recebendo reconhecimento dos meios letrados, mas desses próprios espaços, que têm a oportunidade de incorporar em seus métodos os saberes do povo. "A entrada da viola na universidade representou mais que apenas a entrada de um instrumento em um curso de música. Representou a entrada do saber oral, do saber popular dentro do templo do saber escrito."

Ao trocar o violão pela viola, no início dos anos 1990, talvez Vilela não tivesse a dimensão completa da mudança que abraçava. Hoje, como atesta História e Cultura no Som da Viola, parece que o professor não tem mais dúvidas. A viola não representa apenas certas possibilidades de timbres, músicas a espera de materialização. Ela é emblema polissêmico do povo, do saber popular e dos seus mecanismos, que surgiu em Portugal, cruzou o Atlântico, criou raízes no Brasil e desenvolveu asas para voar. Talvez nenhum outro instrumento musical seja depositário de tanta carga semântica. Vilela sabe disso e mobiliza a viola como exemplo e instrumento na defesa das culturas populares - no plural mesmo, sublinhando sua diversidade - e das minorias que ainda precisam de lugar contra o epistemicídio e o próprio direito de existir.

"Depois de passar quase três anos em Portugal estudando trânsitos e relações sociais das violas através do Atlântico lusófono, cheguei à conclusão que ora apresento, segundo a qual nós, brasileiros, apesar de termos uma estampa europeia em nossas instituições e na maneira como nos vestimos, no fundo, não podemos nos esquecer que o que ainda pulsa dentro de nossos corpos são milhares de vozes indígenas e negras que foram caladas e querem permanentemente gritar - e eles gritam, desde o início do processo civilizador a que fomos submetidos, através de nossos processos criativos, da nossa música popular e das festas ligadas às manifestações do povo que, no fundo, constroem o rosto do que é o Brasil, aqui e lá fora", escreve o professor.

Jornal da USP
https://jornal.usp.br/cultura/forca-da-viola-caipira-esta-nas-raizes-populares-e-no-saber-oral/