Folha de S.Paulo: Resolvi informar, por Marta Suplicy

Folha de S.Paulo: Resolvi informar, por Marta Suplicy



Marta Suplicy

Ex-senadora da República (fev.11 a jan.19), ex-ministra da Cultura (2012-14, gestão Dilma) e do Turismo (2007-08, gestão Lula) e e ex-prefeita de São Paulo (2001-04)


Masturbar faz crescer pelo na mão? Sentar num banco de ônibus quente pode engravidar? Meu namorado quer uma prova de amor.

Questões assim faziam parte dos primeiros anos do TV Mulher, programa da Globo do qual fui uma das apresentadoras em 1980.

Pois foi essa sensação de atraso e indignação que senti novamente quando soube deste projeto absurdo de se instituir no calendário oficial de São Paulo o mês do "Escolhi Esperar". Trata-se de uma proposta apresentada pelo vereador Rinaldi Digilio (PSL), aprovada em primeiro turno com substitutivo para permanência em todos os meses e entrada em todas as instituições. Como se vê, uma tentativa de trazer o retrocesso civilizatório para São Paulo.

Além de não informar, esse projeto não protege nossas crianças e nossos adolescentes. É a mesmíssima tentativa de desinformação de Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) na proposta de tornar política pública o convencimento dos adolescentes para esperar até o casamento para ter relações sexuais.

O projeto do vereador Digilio poderá abrir as portas de escolas, UBSs e hospitais de São Paulo para palestras sobre métodos de pouca eficiência, mas custos elevados aos cofres públicos (o que beneficiará, é claro, entidades conservadoras).

O resultado desta estultice serão jovens grávidas, pois desejo e gravidez indesejada, está mais que provado, não devem ser encarados dessa forma. Existem ações efetivas para evitar gravidez através de educação sexual nas escolas.

Há mais de 30 anos, São Paulo viveu uma experiência, na gestão de Luiza Erundina, que tive a honra de conduzir, a convite do então secretário de educação Paulo Freire. Recuperamos depois o programa quando tomei posse como prefeita, em 2001. Ambas ações pioneiras, exitosas e replicadas em outros municípios.

Agora parece que o mundo virou de ponta cabeça: a Terra é plana, usar máscara como proteção ao vírus é coisa de maricas, tomar vacina traz risco de virar jacaré.

Essa proposta de abstinência para adolescentes, endossada por religiosos conservadores e estimulada pelo governo, Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos, é o que há de mais retrógrado na área da sexualidade em uma cidade reconhecida como vanguarda nos costumes, cosmopolita e que respeita a ciência.

As pessoas praticam suas diferentes religiões, transmitem aos filhos seus valores e exemplos, mas o Estado é laico e não poderá permitir que essa campanha desinformadora, ineficaz, seja impingida aos nossos adolescentes.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou, em junho de 2020, seu repúdio à indicação de abstinência sexual como método eletivo para prevenção da gravidez na adolescência. O texto enfatiza que a única ferramenta comprovadamente eficaz é o amplo acesso à educação e à informação, associados à disponibilidade de serviços de saúde qualificados.

Recomendar abstinência a uma jovem que vai buscar orientações para não engravidar tem quase sempre uma consequência: fazer o pré-natal dessa jovem alguns meses depois.

A cidade de São Paulo tem índole democrática e é vanguarda. A eleição de um prefeito moderno como Bruno Covas (PSDB) apontou claramente que o paulistano quer bom senso e ciência, indicando distância tanto de pautas negacionistas como das de costumes do bolsonarismo.

É importante que a Câmara de São Paulo rejeite essa proposta absurda, pois Damares e seus traumas não têm nada a ver com nossa cidade.

Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/07/proposta-de-abstinencia-para-adolescentes-e-o-que-ha-de-mais-retrogrado-na-sexualidade.shtml?origin=folha