João Saldanha | Imagem: Divulgação
Lembranças de João Saldanha, ou de como eram feitos os manifestos nos anos 70

Lembranças de João Saldanha, ou de como eram feitos os manifestos nos anos 70

O jornalista e técnico gaúcho deixou um time pronto para o México, mas foi demitido dois meses antes da Copa. "Ele escala o ministério, eu, a seleção", disse em referência ao presidente Médici.

"Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à seleção brasileira". Foi dessa maneira, com um comunicado que pouco ou nada muda o atual cenário, que os jogadores brasileiros divulgaram ontem, após o jogo contra o Paraguai, a tão esperada 'nota de repúdio' à Copa América, competição na qual o Brasil estreia no próximo domingo, contra a Venezuela.


No momento em que os jogadores divulgam o seu 'manifesto', IPO News aproveita para lembrar de uma figura ímpar na história do futebol brasileiro: o jornalista e técnico João Saldanha. Nascido em Alegrete em 1917 e morto em Roma, em 1990, esse gaúcho do interior raramente levava desaforos para casa. No auge do período militar, com o presidente considerado o mais duro do regime, Emílio Garrastazú Médici (1905-1985), Saldanha proferiu aquela que seria a sua mais famosa frase:

"Eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo ministério e nem o presidente escala time. Você está vendo que nós nos entendemos muito bem"," disse em resposta a um jornalista que o questionou sobre a suposta preferência do Médici pelo atacante Dadá Maravilha.

O histórico episódio aconteceu em 3 de março de 1970, e duas semanas depois, o técnico gaúcho foi demitido da seleção. Assumiu então Mário Jorge Zagallo, ex-jogador campeão do mundo, que pegou um time pronto e seguiu para o México onde, dois meses depois, comandou o Brasil na grande campanha do tricampeonato mundial: 17 jogos, 14 vitórias, duas derrotas e um empate, culminando com o inesquecível 4 x 1 contra a Itália e a conquista do título.



Para contentar Médici, Zagallo e a direção da CBD convocaram o centroavante Dadá, que sagrou-se campeão mundial como reserva, sem nunca ter saído do banco. Os dois faziam parte da comitiva que foi comemorar o título no Palácio do Planalto, sendo recebidos pelo presidente com toda a pompa que o momento - e o ufanismo da época - mereciam. Jornalistas e historiadores esportivos jamais comprovaram, porém, que Médici tivesse ordenado a demissão de Saldanha. Uma discussão que permanece aberta até hoje.

Quando assumiu a seleção, em 1969, ainda durante o governo de Arthur da Costa e Silva, que morreria naquele mesmo ano, João Saldanha era um veterano jornalista esportivo mas com pouca experiência em campo. Havia atuado como treinador no Botafogo, na década de 50, e só. Em compensação, era bastante popular com sua atuação como cronista.

Não demorou muito tempo e o treinador gaúcho montou um verdadeiro esquadrão, com os melhores quadros da época. Pelé, Tostão, Gerson, Jairzinho, Carlos Alberto Torres, Rivelino, Clodoaldo, Paulo César Caju. "As feras de Saldanha", como se tornou conhecido o time, disputou e venceu as seis partidas eliminatórias, posicionando-se a partir daquele momento como um dos times favoritos da Copa de 70, ao lado de forças como Itália e Inglaterra.

Militante comunista desde jovem, o polêmico João Saldanha colecionava inimizades mas estava no auge. Recebeu o apelido de "João Sem Medo", do também jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980). Falava sobre futebol com a mesma facilidade que discutia política, criticando abertamente as prisões, a tortura e a morte de opositores do regime militar. Com o tempo, foi sendo minado pelos militares e pela própria CBD (Confederação Brasileira de Desportos), posteriormente renomeada CBF, até chegar o momento de ser defenestrado, às vésperas da Copa de 70.

Passado o regime militar, João Saldanha deu várias entrevistas culpando o presidente Médici por sua demissão. No programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido em 1987, ele fez jus à fama e declarou: 

"Eu considero o Médici o maior assassino da história do Brasil... Eu nunca vi ele em pessoa, nunca estive com ele em pessoa. Até recusei em Porto Alegre um convite que fizeram para um jantar com ele. Nós estávamos lá por acaso e sem saber - é claro que talvez eu fosse até barrado - eu disse, Eu não vou. Pô, o cara matou amigos meus... então eu vou compactuar com um ser desses? Eu tenho um nome a zelar - já tinha e tenho ainda".

IPO News reproduz a seguir o vídeo com a entrevista de João Saldanha ao Roda Viva: