Nelson Sargento, em sua casa no Rio, no início de 2021 | Imagem: Foto: Wilton Junior/Estadão
Morre o sambista Nelson Sargento, aos 96 anos, vítima da covid-19

Morre o sambista Nelson Sargento, aos 96 anos, vítima da covid-19

Relembre a trajetória do sambista Nelson Sargento, que tratava um câncer e estava internado no Rio por complicações do coronavírus

Roberta Jansen e Fabio Grellet, O Estado de S. Paulo

RIO - O sambista Nelson Sargento, de 96 anos, morreu na manhã desta quinta-feira, 27, no Instituto Nacional de Câncer (Inca), onde estava internado com covid-19 desde o último dia 20. A assessoria do sambista confirmou a morte às 10h45. Nelson Sargento foi um dos primeiros cariocas a tomar a vacina contra o coronavírus.

No último sábado, 22, o sambista foi transferido para a UTI do Inca, após testar positivo para o novo coronavírus e mostrar um agravamento do quadro respiratório. Ele chegou a ser intubado como a autorização da família.

"O paciente foi internado no último dia 20, com quadro de desidratação, anorexia, e significativa queda do estado geral. Ao chegar na unidade, foi realizado o teste de covid-19, que apontou positivo", informa nota do Inca.



Nelson Sargento morreu por complicações da covid-19 Foto: Wilton Junior/Estadão

Nelson Sargento tratava de um câncer desde 2005, quando foi descoberto um tumor na próstata. Ele já tinha tomado as duas doses da vacina contra a covid-19, a última em 26 de fevereiro.

A vida e obra de Nelson Sargento

"Samba, agoniza mas não morre / Alguém sempre te socorre, antes do suspiro derradeiro", diz o samba mais famoso de Nelson Sargento, lançado em 1978 por Beth Carvalho. Morto um mês antes de completar 97 anos, o compositor, cantor, pintor, ator, presidente de honra da Estação Primeira de Mangueira e torcedor do Vasco foi mais um brasileiro vítima da covid-19, que já matou 454.623 pessoas no País.



Nelson Mattos nasceu na Santa Casa de Misericórdia, no centro do Rio, em 25 de julho de 1924, filho de Rosa Maria da Conceição e Olympio José de Matos. Ela trabalhava como doméstica na casa de um comerciante na Tijuca (zona norte), onde morava com esse e outros filhos. Olympio era cozinheiro-chefe do Armazém Dragão Secos e Molhados, na Rua Haddock Lobo, também na Tijuca. Entre filhos do pai ou da mãe, Nelson tinha 16 irmãos, e conviveu pouco com o pai. Este era separado da mãe e morreu devido a um acidente de trabalho. Uma panela de água fervente caiu sobre ele e Olympio não tratou adequadamente as queimaduras.

Após a separação, a mãe saiu do emprego e, com o filho, passou a morar com um homem chamado Arthur Pequeno. A casa era no morro do Salgueiro, também na Tijuca. Foi ali que, enquanto a mãe lavava roupas para famílias do bairro, Nelson conheceu o samba e a primeira escola de samba.

Aos 9 anos, aprendeu a tocar tamborim e começou a desfilar pela Azul e Branco. A escola foi vice-campeã do desfile de escolas de samba de 1933 e 20 anos depois seria fundida com a Depois eu Digo, do mesmo bairro, para dar origem à Acadêmicos do Salgueiro. Arthur Pequeno era muito amigo de Alfredo Lourenço, um pintor de paredes português que se mudou de Lisboa para o Rio de Janeiro como contratado da Marinha Mercante e se instalou no morro da Mangueira, em uma área conhecida como Santo Antônio. Em 1936, Arthur Pequeno morreu e Rosa Maria e o filho foram morar com Alfredo.


Nelson Sargento desfilando pela Mangueira, em 2018 Foto: Marcos Arcoverde/Estadão

Nelson tinha 12 anos e, levado pelo padrasto - que adorava música, já compusera fados, ritmo típico de Portugal, e no Rio passara a fazer letras de samba - passou a frequentar a Unidos da Mangueira. Era uma escola de samba concorrente da Estação Primeira que existiu ao longo dos anos 1930. A Unidos foi frequentada também por Geraldo Pereira (1918-1955), autor de sambas clássicos como Sem Compromisso e Falsa Baiana.

Além de Geraldo Pereira, na Mangueira Nelson também se tornou amigo de Cartola (1908-1980) e Nelson Cavaquinho (1911-1986), que lhe ensinaram a tocar violão. O menino então começou a musicar as letras compostas pelo padrasto. Alfredo Português, por sua vez, ensinou o enteado a pintar paredes, tarefa que ele começou a realizar profissionalmente em 1941, aos 17 anos.

Àquela altura, a Unidos da Mangueira já deixara de existir, e Nelson passara a integrar a Estação Primeira de Mangueira. Percebendo seu gosto e sua aptidão pela música, o padrasto e Carlos Cachaça (1902-1999), um dos fundadores da Mangueira, convenceram Nelson a se integrar à ala de compositores da Mangueira em 1942.

Sem disposição para pintar paredes, Nelson trabalhou numa fábrica de vidros em Vila Isabel (zona norte). Em 1945 ingressou no Exército, onde permaneceu até 1949, quando encerrou a carreira militar, no posto de sargento. A patente se tornaria parte de seu nome artístico anos depois.

Quando a Mangueira lançou seu enredo para o carnaval de 1949 - Apologia aos Mestres, homenagem a Miguel Couto, Rui Barbosa, Osvaldo Cruz e Ana Neri -, Alfredo Português fez uma letra e propôs ao enteado fazer a letra. Nelson Sargento aceitou e a música foi escolhida para ser cantada durante o desfile, realizado na Praça Onze. A Mangueira, que neste ano disputou um campeonato só com a Portela, enquanto Império Serrano e outras escolas faziam outra disputa, conquistou o título.


Nelson Sargento com Beth Carvalho, em 2020 Foto: Eduardo Nicolau/Estadão

Em 1950 a dobradinha se repetiu: Alfredo Português e Nelson compuseram o samba que conduziu a Verde e Rosa. O desfile exaltou o Salte (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia), plano de metas lançado dois anos antes pelo presidente Eurico Gaspar Dutra e que só foi aprovado pelo Congresso Nacional depois do carnaval de 1950. Não há registro de que o desfile da Mangueira tenha influenciado na votação.

O samba-enredo de maior sucesso de Nelson, no entanto, foi o que a Mangueira cantou no desfile de 1955. Foi composto em parceria com o padrasto e com Jamelão (1913-2008), intérprete dos sambas-enredo da Mangueira de 1949 a 2006 . A exceção foi em 1985, quando não chegou de uma viagem de trabalho a Portugal a tempo de cantar.

Cântico à Natureza, também conhecida como Primavera ou Quatro Estações do Ano, levou a escola ao vice-campeonato, mas é cantada até hoje: "Oh, primavera adorada / inspiradora de amores / Oh, primavera idolatrada/ sublime estação das flores", diz o refrão.

Com tanto sucesso na Mangueira, Nelson se tornou parceiro de Cartola, com quem compôs Vim lhe pedir, Samba do operário e outras canções. A parceria acabou por lançar Nelson Sargento como cantor profissional. Foi no palco do Zicartola, restaurante que Cartola e sua mulher, Dona Zica, mantiveram na casa onde moravam, na rua da Carioca, no centro do Rio, de setembro de 1963 a maio de 1965, que Nelson deixou de ser apenas compositor para se tornar intérprete.

A carreira de Nelson teve três impulsos em 1965: um show, um disco e um nome artístico. Em 18 de março ele estreou no espetáculo Rosa de Ouro, idealizado por Hermínio Bello de Carvalho e cujas principais protagonistas eram a veterana estrela do samba-canção Aracy Cortes (1904-1985) e a então desconhecida Clementina de Jesus (1901-1987). Para acompanhá-las, além de Nelson, foram convidados Jair do Cavaquinho (1922-2006), Anescarzinho do Salgueiro (1929-2000), Elton Medeiros (1930-2019) e Paulinho da Viola.


Em 2001, Nelson Sargento com Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho e Elton Medeiros Foto: Fabio Motta/Estadão

O show gerou um disco, o primeiro de que Nelson Sargento participou, lançado no mesmo ano - outro volume viria em 1967. A oficialização do nome artístico decorreu do show.

"No espetáculo Rosa de Ouro eu já tinha saído do Exército, e o que sabia era pintar parede e fazer samba. Entre a turma toda, era conhecido como Sargento. E no livreto do espetáculo tinha minha foto e a descrição 'Nelson Sargento', daí ficou", contaria Nelson décadas depois.



No mesmo ano de 1965, Zé Ketti foi incumbido por uma gravadora de criar um grupo de samba. Ele chamou Oscar Bigode, Zé da Cruz e os quatro parceiros de Nelson no musical Rosa de Ouro: Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Elton Medeiros e Paulinho da Viola. Em 1966, Nelson - então já Sargento - se uniu a eles no grupo e participou de dois discos, Roda de Samba 2 (o primeiro volume havia sido lançado em 1965, sem Sargento) e Os Sambistas.

O grupo A Voz do Morro se dissolveu em 1967 - mas, neste mesmo ano, Nelson e outros três remanescentes (Elton Medeiros Jair do Cavaquinho e Anescarzinho do Salgueiro) se uniram a Mauro Duarte. Criaram o grupo Os Cinco Crioulos, que perdurou até 1969 e lançou três discos.

Apesar da carreira musical consolidada, Sargento só lançou seu primeiro disco solo em 1979. Sonho de Um Sambista reunia Agoniza mas não morre, lançada no ano anterior por Beth Carvalho, Primavera, Falso Amor Sincero (outra música de muito sucesso) e outras nove canções.




Além de compor mais de 400 canções, Sargento pintou quadros, escreveu livros de prosa e poesias e atuou como ator. Em 1973, enquanto pintava as paredes do apartamento do jornalista Sérgio Cabral (pai do ex-governador do Rio Sérgio Cabral Filho), foi estimulado a montar uma exposição, que aconteceu naquele mesmo ano, com sete quatros. A carreira de artista plástico se prolongou paralelamente à musical - em 2019, 14 quadros seus foram expostos no Espaço Favela do festival musical Rock in Rio.

Desde 2013 Sargento era presidente de honra da Mangueira - substituiu o mestre-sala Delegado, morto em novembro de 2012, aos 90 anos.

Casado com Evonete Belizario Mattos, Sargento deixa seis filhos biológicos e três adotivos.



O Estado de S.Paulo
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