Anthony Hopkins em 'Meu Pai' | Imagem: California Filmes
'Meu Pai': Por que Anthony Hopkins não vai (mas deveria!) ganhar o Oscar

'Meu Pai': Por que Anthony Hopkins não vai (mas deveria!) ganhar o Oscar

Roberto Sadovski

A pior coisa da temporada de premiações do cinema, que chega no próximo domingo em seu auge com a cerimônia do Oscar, é a competição. Existe a celebração da indústria, claro. E existe também todo o aspecto econômico em torno de indicações e laureados. Mas ainda é estranho colocar trabalhos criativos na balança.

Este ano, em uma festa marcada pelo solavanco experimentado pelo mercado audiovisual por conta da pandemia do coronavírus, chegamos à reta final com favoritos e surpresas, com ausências e obviedades. E com uma certeza: o Oscar de melhor ator vai para Chadwick Boseman por "A Voz Suprema do Blues". Mas deveria ser de Anthony Hopkins por "Meu Pai".



Olivia Colman e Anthony Hopkins em 'Meu Pai' Imagem: California Filmes

Não seria a primeira vez que a Academia opta por uma premiação póstuma em uma de suas principais categorias. Em 1977 Peter Finch foi escolhido o melhor ator por "Rede de Intrigas". Já Heath Ledger foi premiado como melhor ator coadjuvante por "Batman - O Cavaleiro das Trevas" na cerimônia de 2009.

Um Oscar para Chadwick Boseman seria não só uma bela homenagem a um ator que se foi muito cedo, mas também a consolidação de um movimento que promove de forma justa maior diversidade e representatividade na festa da Academia.

Obviamente, seria também uma escolha muito justa. "A Voz Suprema do Blues" é teatrão sem muitas novidades, mas que ganha vulto pelas performances superlativas de seu elenco. E não é pouco aplaudir o trabalho de Boseman, especialmente por ele se contrapor à verdadeira força da natureza que é Viola Davis no filme.


Chadwick Boseman em 'A Voz Suprema do Blues' Imagem: David Lee/NETFLIX

Chadwick Boseman, afinal, viu sua estrela disparar em pouquíssimo tempo. Ele já fizera barulho em "42 - A História de Uma Lenda" e no papel título da biografia "James Brown". Mas foi em 2018, quando assumiu a ponta em "Pantera Negra", que o ator conquistou o mundo. Ele já tratava um câncer quando estreou como o personagem da Marvel em "Capitão América: Guerra Civil" dois anos antes, e já estava debilitado pela doença ao rodar "Destacamento Blood" e "A Voz Suprema do Blues", que seria seu trabalho derradeiro.

O filme de George C. Wolfe é testemunho do auge de seu talento e também seu epitáfio. No papel do músico Levee, que tenta sair da sombra poderosa da cantora Ma Rainey (Viola Davis), ao mesmo tempo em que desnuda seu passado e percebe o desafio de ser um homem negro em uma sociedade racista que quer unicamente sugar seu talento, Boseman desenvolve um personagem complexo e surpreendente. É um trabalho lindo, que faz lamentar ainda mais sua ausência. Sob qualquer ponto de vista, é uma performance digna do Oscar.



Ainda assim, não chega perto do que Anthony Hopkins faz em "Meu Pai". É simplesmente outro nível técnico. Vou além: o drama de Florian Zeller não é apenas sua melhor performance em décadas, ao menos desde o pouco visto Vestígios do Dia, de 1993. É também uma das melhores construções dramáticas jamais capturada em filme, um papel com tantas camadas e de tamanha complexidade que é difícil imaginar alguém ali além de Hopkins.

Baseado na peça do próprio Zeller, "Meu Pai" acompanha a rotina de Anthony (Hopkins), viúvo que mora sozinho em um apartamento folgado em Londres. Sua filha, Anne (Olivia Colman) insiste que ele precisa de uma cuidadora, que a idade avançada não o capacita a viver sozinho - o que ele insiste ao contrário. O conflito principal torna-se ainda mais grave quando percebemos que Anthony sofre de demência, e que sua mente e franca degeneração é também sua prisão.

Nunca a doença fora retratada assim em filme, ocupando o ponto de vista principal. Como acompanhamos a trama sob o olhar de Anthony, o filme aos poucos reflete a confusão instaurada em sua mente, as pessoas que vem e vão, os rostos que se confundem, a linha tênue entre realidade e delírio aos poucos sendo apagada.

É um trabalho de direção brilhante, que combina montagem de direção de arte com a interpretação soberba de Hopkins (que eleva o jogo de todo o elenco, de Colman a Imogen Poots e Rufus Sewell) para criar uma obra melancólica, urgente, incômoda e, por fim, devastadora.


Jodie Foster e Anthony Hopkins em 'O Silêncio dos Inocentes' Imagem: Reprodução

Hoje, duas décadas adentro do século 21, é fácil subestimar o trabalho de Anthony Hopkins. Depois de um começo de carreira auspicioso, ele abraçou os palcos londrinos, deixando seu trabalho no cinema em segundo plano. Tudo mudou em 1991, quando ele assumiu o papel de Hannibal Lecter na adaptação de "O Silêncio dos Inocentes", ao lado de Jodie Foster.

O Oscar não só lhe abriu portas, como também revelou a faceta de alguém que sabe não se levar tão a sério. Ele passou a equilibrar trabalhos mais complexos com o cinemão hollywoodiano. Rodou "Freejack - Os Imortais" por querer contracenar com Mick Jagger. Foi o professor Van Helsing em "Drácula de Bram Stoker", de Francis Ford Coppola. Surgiu em "A Máscara do Zorro" e em "Missão Impossível II". Para a Marvel, tornou-se Odin, o mais poderoso dos deuses, em "Thor" e em suas continuações. Hopkins não se furtou em abraçar um papel absurdo em "Transformers: O Último Cavaleiro".

Ao se divertir no cinemão, muitas vezes Hopkins empresta um ar blasé de que não se importa com seu trabalho. O que está longe da verdade. Eu o encontrei em duas ocasiões. Na primeira, conversamos durante o lançamento de "Dragão Vermelho", quando ele me disse encarar Hannibal Lecter não como um ícone, e sim como só mais um personagem.

A segunda vez foi durante as filmagens de "O Lobisomem", em que ele papeou caracterizado para suas cenas, empolgado por fazer parte de um projeto tão divertido. Dois cineastas brasileiros que o dirigiram, Alfonso Poyart (em "Presságios de Um Crime") e Fernando Meirelles (no brilhante "Dois Papas") confirmam sua total dedicação e entrega à arte de interpretar.


Anthony Hopkins e o diretor Florian Zeller no set de 'Meu Pai' Imagem: California Filmes

"Meu Pai" confirma que, aos 83 anos, Anthony Hopkins encontra-se em total controle de seu ofício, injetando veracidade, emoção e complexidade a um personagem que, em mãos menos hábeis, podia facilmente escorregar para a caricatura.

George C. Scott foi o primeiro ator a recusar um Oscar, que ele ganhara em 1970 por seu trabalho impecável em "Patton - Rebelde ou Herói?". Quando seu nome foi anunciado, ele estava longe, em seu rancho, totalmente avesso à cerimônia, descrita como "Um desfile de carne de duas horas, uma exibição de suspense artificial que só existe por motivos econômicos". Já o mestre Federico Fellini, indicado múltiplas vezes e celebrado com uma estatueta honorária em 1993, dizia que "No mito do cinema, o Oscar é o prêmio supremo".

Na cerimônia do próximo domingo, Chadwick Boseman deve ser escolhido postumamente para receber uma justa homenagem por seus pares por seu trabalho em "A Voz Suprema do Blues". Em meu mundo perfeito, porém, não existe ator que mereça mais o Oscar de melhor ator este ano do que Anthony Hopkins.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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