- Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil |
Resta saber a data e a duração do próximo apagão

Resta saber a data e a duração do próximo apagão

Não há uma só distribuidora no planeta com uma área de concessão tão complexa quanto a da Enel-SP, com 90% da rede aérea e que enfrente iguais desafios de adaptação às mudanças no clima


Por Edvaldo Santana

Os apagões que se repetem no Brasil resultam de diferentes inaptidões. Ainda sofreremos, nos próximos 10 anos, dezenas de apagões com a exuberância do último da Grande São Paulo, que até o dia 14 durava mais de 72 horas para um subconjunto de 1,2 milhões de pessoas. O apagão foi o quarto ou quinto desde 2023, sempre motivados por eventos climáticos extremos (ECEs), que são previsíveis, o que ilustra a dimensão da irresponsabilidade, desprezo e negacionismo.

Nicola Pamplona, na Folha de S. Paulo do dia 13, trouxe um caso concreto desse negacionismo. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), tendo como cenário uma audiência no Superior Tribunal de Justiça, enfrentou, sozinho, a Casa Civil da Presidência da República, o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos. O tema era o uso do fraturamento hidráulico ("fracking") para explorar óleo e gás. E o episódio, por triste ironia, ocorreu dia 11, quando o apagão de São Paulo era máximo, e há cerca de 30 dias do fim da COP30, onde o governo se comprometeu com um "mapa do caminho para a transição energética" - ao que parece uma sábia embromação.

O detalhe é que o poder concedente, no caso, o MME, lidera a pressão em prol dos combustíveis fósseis, o que implica descrença nos efeitos do aquecimento global. Ora, se o governo apresenta orientações contraditórias (as do MMA versus as do MME), nada impede que esse caráter nebuloso se reproduza nas relações entre regulador e regulados. Esta é uma característica do negacionismo sistêmico, que, em analogia com o climático, é a atitude de ignorar, rotineiramente, as evidências científicas que apontam para a maior frequência e intensidade dos ECEs.

Uma consequência disso é a inércia regulatória e de planejamento, isto é, a incapacidade de o sistema (físico e institucional) antecipar, adaptar e recuperar-se de choques climáticos. Exemplo: não estão claros, nos novos contratos de concessão, as regras e o ritmo de investimentos para incorporar, de forma obrigatória, os novos riscos do clima. É como se o foco fosse ainda no histórico, e não no futuro climático já instalado.

A outra consequência é o improviso crônico, como uma cultura reativa que só age após o desastre. É uma lógica perversa, em que os colapsos justificam investimentos e despesas emergenciais, que beneficiam a poucos sem resolver o problema. Nessa cultura, o planejamento é substituído pela estratégia de fazer reparos pontuais e caros, que serão testados no próximo ECE.

A expressão que sintetiza tudo isso é a "inaptidão climática e elétrica institucionalizada'. Inaptidão porque o setor elétrico se tem mostrado despreparado, num caso típico de incompetência estrutural, que começa no Conselho de Nacional de Política Energética, que se omite dos problemas relevantes, passa pelo poder concedente e pelo regulador, e vai até a gestão superior das empresas. E essas entidades, por ignorarem os efeitos do clima, parecem não entender o novo padrão de estresse, que tem o clima como origem. É, assim, uma inaptidão institucionalizada, porque não resulta do acaso ou de um "azar", e sim de um modelo de negócio, engenharia e regulação inadequados, pois obsoletos.

Nos próximos dias, se já não aconteceu, um conceituado professor dirá, sem fazer a conta, que uma rede subterrânea é caríssima, por isso inviável para a cidade de São Paulo. Mas é um argumento frágil, fruto do imediatismo proposital.

É óbvio que a rede subterrânea é bem mais cara (cinco a 8 vezes mais) que a aérea, mas evitaria as despesas com os desastres. Estima-se que o investimento anual seria da ordem de R$ 12 bilhões (em 10 anos), para quase toda cidade, enquanto o desastre, como o último, tem um custo de R$ 2,5 bilhões. Mantida a média de três ECEs a cada 24 meses, em 10 anos seria evitado um prejuízo de R$ 12,5 bilhões para a sociedade. A tarifa aumentaria uns 15%, durante o ciclo de substituição da rede, mas faz todo sentido, se olhados 30 a 40 anos à frente.

Um outro dirá que a culpa é das árvores. OK. No avião ou numa embarcação, não depende só do piloto o sucesso diante de uma turbulência sinistra ou de um maremoto. Mas ele perde em importância se não confiarmos na sua habilidade para contornar ou minimizar os efeitos das intempéries.

O problema é que, na regulação obsoleta, a métrica de avaliação da Enel-SP é a mesma aplicada à pequeníssima Sulgipe, de Estância/SE, com cerca de 15 mil consumidores. Só que, como gostam dizer os paulistanos, se São Paulo fosse um país sua economia estaria entre 20 maiores do mundo. Portanto, o limite de duração das interrupções deveria ser de 15 a 20 minutos, como na Europa, e não 7 horas, média brasileira. Se essas 7 horas acontecerem em único dia, os paulistanos deveriam se acostumar com um apagão por ano, que é um absurdo. Ou não?

O grupo Enel é uma organização mundial, de comprovada experiência na gestão de grandes redes, como em Roma e Madrid. No entanto, o número de consumidores dessas duas cidades é quase oito vezes menor que a área de concessão da empresa em São Paulo. E, naquelas capitais, no mínimo 80% da rede é subterrânea, contra um máximo de 10% em São Paulo. Não há uma só distribuidora no planeta com uma área de concessão tão complexa quanto a da Enel-SP, com 90% da rede aérea e que enfrente iguais desafios de adaptação às mudanças no clima. A Enel-SP é seu próprio benchmarking, o que impõe um risco assustador.

O modelo passado, de quanto maior, melhor, em virtude das economias de escala da rede, foi superado pelo figurino atual, que define o clima como padrão de conduta e desempenho. Diante de eventos climáticos cada vez mais extremos, é impossível a gestão de investimento, operação e manutenção de uma empresa com as características da Enel-SP. Não pensar em reestruturar a concessão é, assim, o mesmo que apostar no fracasso garantido.

Mas a saída não é simples. O setor elétrico, em razão das inaptidões aqui apontadas, é refém de suas próprias ineficiências, o que impede soluções transformadoras. Sem elas, resta conviver com uma certeza angustiante, por isso traumática: o próximo apagão não tardará, mas você não sabe data e hora.

Edvaldo Santana é doutor em Engenharia de Produção e ex-diretor da Aneel e colunista do Valor.

Valor
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/resta-saber-a-data-e-a-duracao-do-proximo-apagao.ghtml