Imagem de 1984 mostra o então presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo com Delfim Netto, ministro do Planejamento de seu governo - Moreira Mariz/Folhapress/Moreira Mariz/Folhapress |
Livro detalha inflação descontrolada e recessão na ditadura através de textos publicados na Folha

Livro detalha inflação descontrolada e recessão na ditadura através de textos publicados na Folha

  • 'Economia e Mercado de Trabalho no Final da Ditadura', de João Saboia, descreve ruína econômica dos anos Figueiredo
  • Governo tentava controlar a crise adulterando indicadores de inflação e reduzindo reajustes salariais

Felipe Gutierrez

Na história da economia brasileira, a ditadura militar costuma ser associada ao que ficou conhecido como o milagre, o intervalo entre 1968 e 1974, em que o PIB crescia a uma taxa de cerca de 10% ao ano.

Mas o fim do período militar foi completamente diferente. Em 1985, João Figueiredo, o último presidente do regime, entregou um país com inflação em altíssima aceleração, ainda não recuperado de recessões severas (em 1981, o PIB caiu 4,25%, o segundo pior desempenho em todo o século 20, atrás de 1990) e que estava na iminência de dar um calote em sua dívida.

O livro "Economia e Mercado de Trabalho no Final da Ditadura" (editora Lux, 298 págs., R$ 81) descreve como foi se desenrolando a degradação econômica do regime num compilado de textos publicados pelo autor, João Saboia, na Folha, de 1979 a 1984.

Formado em engenharia, Saboia fez doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, em meados dos anos 1970. Ele acabou se tornando professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mas, quando ainda estava no exterior, conheceu um outro economista, Eduardo Suplicy, que havia se tornado colunista da Folha. Foi por sugestão de Suplicy que Saboia começou a colaborar como articulista do jornal.

A grande preocupação de Saboia naqueles anos era a renda do trabalho.

Um texto publicado em maio de 1983 faz um bom apanhado de como era a política salarial dessa época. "Até novembro de 1979, os reajustes salariais eram anuais e determinados por uma complexa fórmula matemática calculada pelo governo. Naquela época, entretanto, o movimento sindical estava em efervescência, pipocando greves por todo o país. Foi, então, que o governo Figueiredo enviou ao Congresso projeto de lei modificando a legislação salarial. Os reajustes passaram a ser semestrais, automáticos e diferenciados."
Na prática, quem ganhava até três salários mínimos recebia 110% da inflação como reajuste. Para salários maiores, o percentual ia diminuindo.

Ocorre que o país estava muito endividado e enfrentou anos de recessão.

Ou seja, o esforço do governo era para tornar suas obrigações financeiras gerenciáveis, o que significava correr atrás de superávits do balanço de pagamentos. Nas palavras de Saboia, a dívida externa governava o Brasil.

Para tornar o custo da produção brasileira barata e mais fácil de ser exportada, o governo sistematicamente tentava reajustar os salários de forma desfavorável aos trabalhadores. O principal método para isso era manipular o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), o principal índice para medir a inflação na época.

Foto em preto e branco de uma multidão de pessoas com os braços levantados, é possível ver que a maioria é de homens jovens
Imagem da greve dos metalúrgicos de 1979, no paço Municipal de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista; movimento sindicalista do período conseguiu bons acordos de reajustes, mas que não duraram muitos anos - Fernando Santos/Folhapress

Em um momento, o governo lança a ideia de tirar do índice de inflação os aumentos dos preços do petróleo (Saboia faz os cálculos e aponta que isso seria suficiente para diminuir a inflação de 102,5% para 84,2% em 12 meses).

No meio de 1983, a discussão volta a aparecer: "Inicialmente, falava-se em expurgar (livrar, limpar) dos índices os efeitos de elevações de preços decorrentes da eliminação de subsídios. Posteriormente, passaram a ser consideradas as 'acidentalidades' -geadas no Sul, secas no Nordeste a até as greves. Finalmente, chega-se à conclusão de que não é nada disso. Trata-se, pura e simplesmente, de manipulação de índices. O que mais nos choca é que, enquanto no passado essas manipulações eram feitas às escondidas, agora elas são realizadas em público."

Ou seja, eram artimanhas que seriam inimagináveis em um período democrático. Em uma ditadura já decadente, ao menos era possível criticar publicamente. Em entrevista à Folha, Saboia afirmou que, por isso, o período Figueiredo "foi um alívio", já que a possibilidade de apontar os problemas não existia no auge do governo militar.

O FIM DA TRANSFERÊNCIA AOS MAIS POBRES
A movimentação do novo sindicalismo do fim da década de 1970 conseguiu firmar a regra de reajustes favoráveis aos mais pobres em 1979 (aquela que dava 110% da inflação para quem ganhava três salários-mínimos), mas o governo tentou torpedear isso durante anos. Foram iniciativas diversas: ora para retomar os reajustes anuais, ora para tentar firmar o reajuste pela expectativa de inflação.

No fim, a regra foi derrotada. João Figueiredo anunciou a mudança: reajustes semestrais de 80% da inflação -e o índice já era "expurgado". Para Saboia, tratava-se de um arrocho salarial comparável ao ocorrido entre 1964 e 1968.

BATENDO TODOS OS RECORDES

Em agosto de 1980, Saboia alertou: "Recentemente, a inflação disparou, ultrapassando a barreira dos 100% ao ano (...). A dificuldade encontrada pelo governo para diminuir o ritmo inflacionário naquele ano 'nos leva a crer que seremos obrigados a conviver com altas taxas de inflação nos próximos dois ou três anos'".

No começo de 1984, ao falar sobre o ano anterior, ele repete as palavras: "A inflação bateu todos os recordes, superando a marca de 200% ao ano". Só em 1994, com Plano Real, a inflação foi controlada.

A ditadura combatia a inflação tentando desaquecer a economia. Na mesma coluna, ele escreve que "o Produto Interno Bruto, após o terceiro ano consecutivo de recessão, apresentará a maior queda já registrada em todos os tempos, acarretando um empobrecimento generalizado da população".

Na ocasião, ele ainda tinha alguma esperança, que era "a possibilidade remota, porém concreta, de termos eleições diretas no próximo ano". Só em 1989, com a eleição de Fernando Collor, houve eleições diretas.

Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/12/livro-detalha-inflacao-descontrolada-e-recessao-na-ditadura-atraves-de-textos-publicados-na-folha.shtml