'Vidas Secas', o elo perdido entre o craque Reinaldo e o ator Wagner Moura, por Luiz Carlos Azedo

'Vidas Secas', o elo perdido entre o craque Reinaldo e o ator Wagner Moura, por Luiz Carlos Azedo

O craque não participava de organizações de esquerda, era apenas um dos maiores atacantes de sua geração e comemorava seus gols com o punho cerrado

A decisão da Comissão de Anistia de reconhecer o ex-jogador José Reinaldo de Lima, ídolo do Atlético Mineiro e da Seleção Brasileira, como vítima da perseguição política da ditadura militar ilumina uma faceta menos lembrada, porém decisiva, da repressão brasileira: a violência cotidiana, difusa, que atingia não apenas militantes clandestinos, mas qualquer cidadão que ousasse romper o enquadramento simbólico e disciplinador imposto pelo regime.

Reinaldo não conspirava, não participava de organizações de esquerda. Era apenas um dos maiores atacantes de sua geração, um jovem negro, carismático, que comemorava seus gols com o punho cerrado, marca dos movimentos de direitos civis norte-americanos, que simbolizava autoestima, dignidade e autonomia. Para os generais e para a cúpula da antiga Confederação Brasileira de Desportos, aquele gesto era uma mensagem perigosa para os torcedores e demais jogadores.

A perseguição sofrida pelo atacante, agora reconhecida como violação de direitos pelo Estado brasileiro, revela como a repressão atuava para além dos porões. Ela se exercia também nos estádios, convocações para a Seleção, clubes e imprensa esportiva. O atleta foi observado, advertido, prejudicado, enquadrado. Reinaldo insistiu no gesto, contrariando o grau de controle social que o regime desejava impor. Para além do silêncio político, o regime promovia a domesticação simbólica de figuras públicas capazes de influenciar multidões.

Essa mesma dimensão da repressão, que escapava às prisões e torturas clandestinas, também é revisitada com força pelo vitorioso filme O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, que, ontem, foi proclamado vencedor do New York Film Critics Circle Awards, sendo o seu protagonista, Wagner Moura, premiado como melhor ator.

Depois de Ainda estou aqui, de Walter Salles Junior, com Fernanda Torres no papel principal, O agente secreto reinscreve o Brasil no debate global sobre as cicatrizes do autoritarismo, resgatando a atmosfera de vigilância e violência institucional que atravessava o cotidiano. Ao lado de Pixote, Cidade de Deus e Bacurau, também premiados anteriormente, o longa expressa uma cinematografia que denuncia a permanência da brutalidade de Estado no cotidiano dos cidadãos.

Essa é uma chave para a compreensão do país e, também, da violência instalada ainda hoje na sociedade brasileira, dos grandes centros urbanos aos grotões. Um exemplo dessa violência foi a atuação da Scuderie Le Cocq, o chamado "esquadrão da morte". Formado por policiais, o grupo encarnou a mentalidade do "justiçamento" que deu origem à frase "bandido bom é bandido morto", mais tarde popularizada como espécie de mantra da barbárie urbana, e que está aí, vivíssima, no debate sobre a política de segurança pública.

Violência difusa


A Scuderie não atuava à margem do Estado, era fruto de uma política de segurança que legitimava execuções sumárias, apoiada por parcelas da imprensa e celebrada por segmentos da população. Era o braço visível de um ecossistema violento que convivia com o braço invisível: o desaparecimento forçado de opositores políticos, prática que marcou profundamente a repressão da década de 1970. Para compreender esse sistema, é necessário enxergar sua raiz profunda: uma tradição secular de violência estatal no Brasil.

Essa tradição foi magistralmente sintetizada por Graciliano Ramos em Vidas Secas (José Olympio), na cena em que Fabiano, homem pobre, trabalhador e analfabeto, é espancado pelo Soldado Amarelo sem motivo, sem explicação e sem possibilidade de defesa. O protagonista, que mal domina as palavras, tenta compreender a lógica do acontecido, mas tudo que encontra é a arbitrariedade da autoridade, o peso brutal da farda e a certeza silenciosa de que não há justiça para gente como ele.

A violência contra Fabiano é estrutural, cotidiana, uma engrenagem do poder. Seu espancamento é a metáfora perfeita da relação histórica entre Estado e povo - sobretudo negros, pobres e trabalhadores - muito antes da ditadura militar. Esse é o elo perdido entre a anistia de Reinaldo e a magistral atuação de Wagner Moura.

Essa herança atravessou regimes, atravessou instituições e se transformou nos anos de chumbo em uma dupla máquina de repressão: de um lado, os esquadrões da morte que matavam a céu aberto; de outro, os aparelhos clandestinos que assassinavam no escuro, sequestrando corpos e memórias. A ditadura não inventou essa violência, aperfeiçoou, institucionalizou, usou-a a seu favor no combate aos inimigos declarados e aos imaginários.

Reinaldo foi um desses "inimigos imaginários", fabricados por uma lógica que confundia dignidade com subversão. O caso do atacante reforça que a repressão não foi apenas política: foi também cultural, simbólica, pedagógica. O Estado buscava moldar comportamentos, sufocar gestos, controlar a expressão pública.

No futebol, objeto principal do ufanismo oficial, isso era evidente. Jogadores eram pressionados a encarnar o mito da "pátria ordeira". Reinaldo recusou o papel. E pagou por isso. Somente agora, décadas depois, veio a reparação.

Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/vidas-secas-o-elo-perdido-entre-o-craque-reinaldo-e-o-ator-wagner-moura/