O cineasta americano que faz aniversário neste domingo, 30, publicou recentemente seu primeiro romance e adiou a aposentadoria das telonas ao conseguir um apoio financeiro do Governo de Madri para gravar seu próximo longa-metragem no verão de 2026
Por Gabriel Zorzetto
Woody Allen não para. O cineasta americano que completa 90 anos neste domingo, 30, indicou que se aposentaria após lançar seu 50º filme, a boa comédia romântica Golpe de Sorte em Paris (2024), mas felizmente não será o caso. Acostumado a fazer filmes na Europa, ele conseguiu um apoio financeiro do Governo de Madri (cerca de R$ 9 milhões) para gravar seu próximo longa-metragem em meados de 2026.
A nova empreitada do diretor será mais um exemplo de sua capacidade de se distanciar de Nova York - terra tão bem retratada em sua filmografia - para transformar as cidades europeias em protagonistas, revelando seu fascínio pela história, arte e atmosfera cultural do Velho Continente.
Esse deslocamento se deu na parte tardia da carreira, após décadas de enredos dedicados à Big Apple. Com a trilogia inglesa Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007), ele renovou seu olhar cinematográfico, reinterpretando temas de sua predileção, como acaso, desejo, memória e identidade. Depois, fez longas premiados como Vicky Cristina Barcelona (2008), Meia-Noite em Paris (2011) e o soberbo Blue Jasmine (2013), este último situado em São Francisco, na Califórnia.
Mas seu prestígio nos Estados Unidos começou a degringolar nos últimos dez anos. O artista foi alvo de críticas em razão do julgamento moral envolvendo seu relacionamento com Soon-Yi Previn, filha adotiva de sua ex-companheira Mia Farrow. Quando o caso veio à tona, Farrow - protagonista de alguns dos maiores clássicos de Allen, como A Rosa Púrpura do Cairo (1985) - tentou comprovar na Justiça que o diretor havia abusado de Dylan, filha do casal. No entanto, duas investigações independentes concluíram que não houve evidências de abuso. Na esteira disso, um documentário tendencioso da HBO, Allen contra Farrow (2021), tentou transformá-lo num monstruoso predador sexual.
Mesmo inocentado, Allen foi julgado pela cultura do cancelamento e perdeu espaço de trabalho na América, fato que não interferiu em nada seu processo criativo. "Eu nunca realmente levei isso a sério, pois nunca tive que ir ao tribunal. Apenas continuei trabalhando e não pensei sobre isso. Na prática, nunca me afetou de forma alguma", contou o diretor em entrevista ao Estadão em 2024.

Selena Gomez e Woody Allen nas gravações de 'Um Dia de Chuva em Nova York' Foto: Jessica Miglio/Gravier Productions
A complexidade dos relacionamentos
A conversa com Allen, aliás, foi uma oportunidade para abordar aspectos fundamentais de seu trabalho. O roteirista explorou como ninguém a complexidade dos relacionamentos amorosos, sobretudo por meio de personagens inseguros. Nos essenciais Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Manhattan (1979) e Hannah e Suas Irmãs (1986), por exemplo, o telespectador se depara com as contradições afetivas entre desejo e medo, intimidade e liberdade, em tramas carregadas de humor e melancolia.Em muitos de seus filmes, ficção e realidade se misturam. O mestre nova-iorquino projetou nas telas seus romances com Diane Keaton (1946-2025) e Mia Farrow, escalando-as para refletirem suas respectivas personalidades. Enquanto Keaton deu vida a mulheres inteligentes, irônicas e independentes, Farrow era a imagem de figuras mais introspectivas e vulneráveis. Outro fato imperativo para reforçar a identidade autoral do diretor foi ele ter atuado em muitos de seus projetos, representando homens alinhados com sua persona neurótica, ansiosa e intelectual.

Woody Allen e Diane Keaton no clássico 'Manhattan', de 1979 Foto: Reprodução/Woody Allen via Facebook
O apreço pela literatura e o jazz
Antes de virar uma referência da sétima arte, Allen se destacou como humorista, contando piadas em bares no Greenwich Village e escrevendo esquetes para programas de TV. Alguns de seus textos foram publicados pela revista The New Yorker e depois reunidos em três volumes: Cuca Fundida (1971), Sem Plumas (1975) e Que Loucura! (1980).O apreço pela literatura foi retomado décadas depois. Sua saborosa autobiografia, A Propósito de Nada (2020), expõe um olhar modesto sobre uma trajetória inigualável em Hollywood. Auto rotulado um homem de "muita sorte", ele não se coloca, por exemplo, no patamar de cineastas como Kurosawa, Bergman ou Fellini - nomes que lhe influenciaram muito mais do que qualquer realizador americano.
Admirador de Machado de Assis, ele registou divertidas prosas no livro de contos Gravidade Zero (2023) e acaba de lançar seu primeiro romance, What's With Baum? (ainda sem edição no Brasil), que narra as desventuras de um escritor judeu de meia-idade em Nova York.
Como se tanto talento não bastasse, o astro é clarinetista amador e toca regularmente com bandas de jazz, tendo gravado o disco Wild Man Blues (1998). Não à toa, utilizou músicas do gênero para criar a atmosfera intimista e confortável de suas narrativas.
Por essas e outras razões, enquanto Allen, com fôlego de um incancelável, seguir produzindo o que sabe de melhor, continuaremos a buscar amparo em sua obra quando a vida parece estar, de fato, "dividida entre o horrível e o miserável".
Estadão
https://www.estadao.com.br/cultura/cinema/woody-allen-chega-aos-90-com-folego-de-um-artista-incancelavel/?srsltid=AfmBOorJQsWpCZ15PgtmaVLKJlb_eO0tz_fZSyPD3e-pqiHDlBGy2dNx





