- Rosto da estrela compôs, ao longo dos anos, uma poesia do feminino
- Com Visconti e Fellini, ela escondia a sensualidade sob uma capa de simpatia
Inácio Araujo
Crítico de cinema da Folha
Como quase todas as atrizes do cinema italiano nos anos 1950, Claudia Cardinale chegou ao cinema após ganhar o concurso de "A Mais Bela Garota Italiana de Túnis", o que lhe valeu uma passagem para a mostra de cinema de Veneza. Foi o que bastou para ele, nascida na Tunísia, ser convidada a atuar num país cuja língua mal falava.
No princípio ela não queria. O pai é que a convenceu de que podia dar certo no cinema. O problema central era a língua. Ela bem que aprendeu, mas seu italiano sempre teve forte sotaque, por isso mesmo era sempre dublada.
Foi assim desde a estreia, num papel secundário de "Os Eternos Desconhecidos", de Mario Monicelli, depois já como a garota indefesa deixada na mão em Parma, em "A Moça com a Valise", de Valerio Zurlini, ou como a jovem burguesa leve, desenvolta, recata e pronta para entrar na nobreza italiana, em "O Leopardo", de Luchino Visconti.
Claudia Cardinale já deixava sua marca como presença e como atriz, mas o fato é que seu sotaque obrigava os diretores a optarem por dublá-la. Fellini interrompeu esse hábito no seu "Oito e Meio": queria ouvir o sotaque da personagem, também chamada Claudia.

A atriz Claudia Cardinale em 'Vagas Estrelas da Ursa', de 1965, do diretor Luchino Visconti - Reprodução
Cardinale sempre deu a impressão de ser de outro lugar. Quase escondia sua natural sensualidade sob uma capa de simpatia. A esse aspecto sensual misturava-se uma economia dos gestos que, junto com a beleza marcante, logo a alçou à primeira linha das atrizes europeias.
La Cardinale, como também era chamada, não destoava, no entanto, de certo realismo que caracterizava as atuações femininas de Cinecittà. Isto a levou a protagonizar um duro drama de Visconti -o cineasta que mais a utilizou-, "Vagas Estrelas da Ursa".
A exemplo de várias atrizes italianas, fez a ponte para os EUA e, também a exemplo de várias delas, não se deu bem. Em "A Pantera Cor-de-Rosa", um filme feito para Peter Sellers e David Niven, a principal presença feminina era Capucine. Em poucas palavras, a comédia podia muito bem passar sem Cardinale. Vale quase o mesmo para o honesto faroeste "Os Profissionais", de Richard Brooks: quem comandava o espetáculo eram Burt Lancaster e Lee Marvin.
Essa fase de sua carreira termina gloriosamente com "Era uma Vez no Oeste", de 1968. No clássico faroeste de Sergio Leone, Cardinale fazia a ex-prostituta de Nova Orleans que herdava uma propriedade bem no lugar onde deveria passar uma ferrovia. Com isso, suas terras passariam por violenta valorização, caso sobrevivesse aos donos e pistoleiros da estrada de ferro.

A atriz Claudia Cardinale em cena de 'O Leopardo', de 1963, filme dirigido por Luchino Visconti - Divulgação
É uma pena, mas essa fase se encerrou meio melancolicamente com outro faroeste, "As Petroleiras", de Christian-Jaque, apesar da dupla de foras da lei que compôs com Brigitte Bardot.
Uma outra fase de sua carreira se abriria em 1982 com o belíssimo "Fitzcarraldo", insânia amazônica de Werner Herzog, então um dos principais nomes do chamado novo cinema alemão. No mesmo ano faria "A Pele", de Liliana Cavani. Agora era uma Cardinale madura que entrava em cena. Ela mesma, que nunca levou a sério a ideia de fazer alguma cirurgia plástica.
A atriz já era, decididamente, uma senhora, quando filmou "O Gebo e a Sombra" com Manoel de Oliveira, outro grande nome do cinema, em 2012, já aos 74 anos. Foi o último trabalho de fôlego de Oliveira, que nessa altura já tinha 104 anos. E também de Cardinale então com 74 -para ambos, uma bela maneira de encerrar um ciclo.
O rosto de Cardinale compôs, ao longo dos anos, uma poesia do feminino que se impõe pela simpatia, pelo charme, pela elegância dos gestos, pela sensualidade e pela força do caráter. Uma poesia talvez mais atual do que costumamos imaginar.
Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/09/como-claudia-cardinale-mudou-o-paradigma-das-estrelas-italianas.shtml