Remuneração obtida pode ser maior que no mercado formal - Foto: Guito Moreto/Agência O Globo |
CLT versus plataformas, segundo os trabalhadores

CLT versus plataformas, segundo os trabalhadores

A autonomia para definir seu horário de trabalho é ponto de destaque para os trabalhadores de plataforma

Por João Saboia, Tiago Magaldi e François Roubaud

O trabalho em plataforma é relativamente recente. O iFood foi criado em São Paulo em 2011 e o Uber chegou ao Brasil em 2014. A partir daí houve transformações importantes no mercado de trabalho. Ao dificultar a movimentação da população no dia a dia, a pandemia da covid-19 representou um marco importante para o trabalho em plataforma, tendo crescido bastante a partir de 2020, com destaque para os trabalhadores de transporte em plataformas (TTP), que representam um de seus grupos mais numerosos.

A partir da divulgação do módulo "Trabalhadores de Plataforma" da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua (PNADC), coletados pelo IBGE no quarto trimestre de 2022, foi possível ter uma estimativa do contingente de trabalhadores nesse tipo de atividade. No final de 2022, o Brasil tinha 1,240 milhão de TTPs, incluindo 699 mil motoristas e 541 mil entregadores.

Atualmente, há uma grande preocupação com tais trabalhadores, que além de terem crescido muito nos últimos anos, estão à margem da legislação trabalhista. Apesar de trabalharem para grandes empresas, têm características que lembram mais o trabalho informal do que o formal. Não possuem carteira assinada nem a proteção previdenciária do setor formal da economia.

Uma das questões que têm sido discutidas, não apenas no Brasil, é até que ponto tais trabalhadores são ou não "empregados" das respectivas empresas que utilizam seus serviços. Até que ponto a relação de trabalho entre as duas partes deveria ser formalizada através de um contrato de trabalho? As empresas costumam afirmar que tais trabalhadores são autônomos e que, portanto, não existe uma relação de trabalho usual como em outros segmentos da economia. E os TTPs, como veem tal relação? Será que gostariam de ser contratados com carteira assinada?

Para tentar responder algumas das questões acima a partir do ponto de vista dos TTPs foi desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) uma pesquisa com uma equipe multidisciplinar de pesquisadores brasileiros e estrangeiros cujos principais resultados foram objeto de um artigo publicado no site do Instituto de Economia da UFRJ no ano passado. Um dos lados mais interessantes da pesquisa é seu aspecto qualitativo, obtido a partir de uma amostra de motoristas e entregadores de aplicativos (Uber e iFood, entre outros) levantada no Rio de Janeiro. (Ver: Magaldi T., Azaïs C., Razafindrakoto M., Roubaud F., « 'Uma escolha muito difícil': CLT versus plataformas na avaliação dos trabalhadores brasileiros em uma abordagem quali-quanti », Revista de Economia Contemporânea, 28, p. 1-41, 2024).

Surpreendentemente, apesar dos rendimentos relativamente baixos e das longas jornadas de trabalho, os TTPs se mostram relativamente satisfeitos com o trabalho realizado nas respectivas plataformas e, quando perguntados se trocariam seu trabalho atual por um emprego com carteira assinada, várias razões para se manterem no trabalho em plataforma foram apresentadas. Para entender essa aparente contradição a pesquisa aponta vários fatores.

Em primeiro lugar, afirmam que as alternativas existentes no mercado formal de trabalho para eles seriam empregos com salários menores do que o rendimento que conseguem levantar nas plataformas. Informam que ajustam suas jornadas de trabalho às suas necessidades, chegando até 12 ou 14 horas diárias. Com isso conseguem obter rendimentos superiores aos que receberiam no setor formal.

A autonomia para definir seu horário de trabalho é ponto de destaque para os trabalhadores de plataforma. A liberdade para definirem não apenas o total de horas de trabalho, mas também se querem ou não trabalhar em um determinado dia, é um ponto muito positivo segundo os TTPs entrevistados.

Um terceiro fator destacado pelos trabalhadores de plataforma em relação à percepção da autonomia é o elogio da suposta ausência de "patrão" ou um representante deste no cotidiano de trabalho. A sensação de se estar livre disso, confirmada pela interação descontraída dos entregadores entre as entregas e, no caso dos motoristas, pelo domínio de si e de seu carro, não é algo menor na avaliação dos trabalhadores. A valorização deste ponto é tão grande que mesmo o forte controle indireto exercido pelas plataformas não diminui seu alcance.

Mas nem tudo são flores. Se, por um lado, há a percepção e a valorização de maior autonomia pessoal e certa satisfação geral com o trabalho por aplicativo, isto não significa que a relação com a plataforma seja considerada como positiva. Há, por parte dos motoristas, uma percepção de degradação da sua remuneração, que é motivo de crítica e até indignação. Há ainda duas outras críticas que merecem ser destacadas: a péssima comunicação com as plataformas e os bloqueios unilaterais.

Uma série de problemas de maior ou menor grau que caracteriza o cotidiano do trabalhador está associada à relação com as plataformas, justamente porque uma de suas características centrais é a virtual ausência de intermediários entre plataformas e trabalhadores. A suspensão da conta do trabalhador é a consequência mais drástica da conjunção entre o conflito com um cliente e a falta de canais de comunicação com a plataforma. Nas entrevistas realizadas foram relatados vários casos de colegas que foram bloqueados unilateralmente, sem abertura de diálogo ou chance de defesa por iniciativa da plataforma.

Os resultados da pesquisa mostram a singularidade do trabalho em plataformas no caso dos TTPs e as dificuldades para enquadrar esse tipo de trabalho na legislação brasileira desenvolvida em outros tempos para um mercado de trabalho que passou por modificações profundas nos últimos dez anos.

Finalizando, apesar da relativa satisfação dos TTPs com seu trabalho, sua situação mostra uma grande instabilidade quanto ao presente e futuro. A falta de uma relação formal com a previdência social os deixa expostos a acidentes de trabalho sem cobertura no presente e sem perspectivas de aposentadoria no futuro. Nessa situação, quem pagará a conta em algum momento será o SUS (doenças e acidentes) e o BPC (assistência social).

João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ.

Tiago Magaldi é professor substituto do Departamento de Sociologia da UFRJ.

François Roubaud é diretor de pesquisa do IRD (França) e professor visitante do Instituto de Economia da UFRJ.

Valor
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/clt-versus-plataformas-segundo-os-trabalhadores.ghtml